No post anterior deve ter ficado claro que não há português errado ou correto: o que
existe é um uso adequado ou inadequado da língua. Dessa forma, o conceito mais importante
para se lembrar nos vestibulares, no ENEM e em toda vida é o de adequação de
linguagem. Nesse contexto, o usuário da língua portuguesa precisa se mostrar um
poliglota, ou seja, alguém capaz de entender e de se comunicar dentro das
variedades linguísticas que o nosso idioma oferece. Garantidos esses
pressupostos, pode-se dar atenção agora a duas das variantes mais importantes do
português: a norma culta e a norma coloquial.
A primeira variedade, velha conhecida, é
a ensinada nas escolas, acabando por ganhar a fama de “português correto”. Sua
grande característica é estar apegada à Gramática Normativa, cheia de regras de
colocação pronominal, regência verbal, regência nominal, concordância verbal,
concordância nominal. Pode parecer uma vertente mais trabalhosa de dominar, mas
com esforço é passível de ser conquistada.
Apesar de ser uma entre as inúmeras manifestações
da língua portuguesa, a norma culta é importante por ser a ferramenta de acesso
a documentos valiosos em nossa cultura, como leis e textos científicos. Sabê-la
é, portanto, uma forma de garantir direitos e cidadania.
Além disso, o padrão culto busca a universalidade,
ou seja, procura ser entendido em qualquer local em que se use o nosso idioma.
Em razão disso, é interessante, portanto, que ele seja usado, por exemplo, em
leis, pois garante que todos tenham acesso a essas informações.
Outra característica da norma culta é a
redundância. Ela é marcada, por exemplo, pela pluralização de vários termos,
como em “os livros azuis estão
na mesa”.
Por fim, ela é a variedade linguística
mais prestigiada, pois costuma ser associada ao falar das pessoas das classes
altas. E aqui cabe lembrar um fato negativo: o preconceito linguístico.
Infelizmente, em nossa sociedade, quem não usa essa variedade corre o risco de
ser discriminado.
A outra forma linguística é a norma
coloquial, geralmente desprestigiada por ser alvo de preconceito. Comportamento
infundado, pois, primeiramente, esse código linguístico não é um vale-tudo, uma
linguagem cheia de erros e sem regras. Um exemplo de sua regularidade está no
emprego do pronome “mim” como sujeito de verbo no infinitivo, tal qual aparece
na frase em que Macunaíma, protagonista do romance homônimo de Mário de
Andrade, dirige-se a Curupira:
– Meu avô, me dá um pedaço de
carne pra mim comer?
Essa construção, extremamente abominada por
muitos usuários de nosso idioma, é vista por grandes escritores modernistas,
entre eles Mário de Andrade e Manuel Bandeira, como uma das mais legítimas e bonitas
da língua portuguesa falada no Brasil. E ela não está incorreta, pois é
sistemática e regrada. Prova disso é que várias pessoas do nosso país a usam.
Se fosse errada, um ou outro falante a utilizariam.
Outra prova da validade desse fenômeno é
que ele é sistemático, ou seja, obedece a um conjunto de regras: PRA + MIM + Verbo
no Infinitivo: pra mim comer, pra mim escrever, pra mim passar. Corrobora essa
regularidade o fato de ninguém em nosso país usar “mim” como sujeito em outro
tipo de verbo: “mim se inscreveu no canal O Magriço Cibernético”, “mim vai
passar no ENEM”.
E quais são as regras do funcionamento
da norma coloquial bastante cobradas no ENEM e nos grandes vestibulares? Em
primeiro lugar, o postulado básico é a preocupação com economia e praticidade,
o que estabelece oposição com a norma culta, que é redundante. Para captar esse
princípio fundamental, basta lembrar um trecho de “Pelados em Santos”, dos
Mamonas Assassinas:
Mina, seus cabelo é da hora
Essa frase representa muito bem o
funcionamento da norma coloquial. Se o termo “seus” já indica plural, não há
necessidade de colocar os demais (“cabelo” e “é”) nessa mesma condição.
Trata-se de um comportamento oposto ao da norma culta, que, redundante, repete
o princípio de pluralização: “seus cabelos são”.
Outro exemplo que confirma esse processo
é “As Mariposa”, de Adoniran Barbosa:
As mariposa quando chega o frio
Fica dando vorta em vorta da
lâmpida pra si esquentá
Elas roda, roda, roda, dispois si
senta
Em cima do prato da lâmpida pra
discansá
O primeiro termo, “as”, já indica
plural, portanto, não é preciso colocar em condição semelhante os seguintes. Tem-se
então “as mariposa”. Esse princípio também se aplica à concordância verbal. Se “as”
apresentava valor de plural, dispensa-se conjugar o verbo nessa forma: “As
mariposa fica”. Procedimento semelhante ocorre em “elas roda”: o pronome pessoal
do caso reto “elas”, por já ter valor de plural, dispensa “rodar” de ser
flexionado nesse status.
Aliás, a praticidade da norma coloquial também
pode ser percebida nas pessoas gramaticais. Enquanto o padrão culto apresenta
seis (eu rodo, tu rodas, ele roda, nós rodamos, vós rodais, eles rodam), o
coloquial apresenta apenas duas, que são o eu e os outros: eu rodo, tu roda,
ele roda, nós (ou nóis) roda, eles roda. Detalhe: não há nessa variedade a
segunda pessoa do plural (vós), pois essa já deixou de ser usada pelos usuários
de nosso idioma em situações cotidianas.
Em resumo, a norma coloquial é pautada
pela busca de simplicidade. E pouco importa se é uma forma certa ou errada,
bonita ou feia. O que interessa é que funciona. Nesse sentido, mais útil e
interessante é, em vez de se agir com preconceito com relação a essa variedade
linguística, prestar atenção em como ela funciona, tentar detectar suas regras.
No nosso próximo post serão apresentadas nossas últimas considerações a respeito das
variedades linguísticas.