domingo, 20 de março de 2016

Sublimidade em tempos de cólera: Miserere, de Allegri

Entramos na Semana Santa, preparação para o momento mais importante do universo cristão: a Páscoa. Em outros tempos, esse período era tomado de uma rotina diferente, como ocorrera no século XVII, época da peça acima, transformação em canto do Salmo 51, de história interessante. O rei Davi unira-se carnalmente a Betsabá, esposa de Urias. E, para acobertar sua falta, mandara matar o marido dela. O profeta Natã então advertira o poderoso da gravidade do atentado contra dois mandamentos divinos (“Não cobiçarás a mulher do próximo” e “Não matarás”), o que provocou no monarca profundo arrependimento. É nesse momento que, de acordo com a tradição bíblica, Davi proferiu o belo texto em questão, marcado pela consciência do pecado, pelo espírito de penitência e pelo pedido de misericórdia.
Na década de 1630, o italiano Gregorio Allegri compôs essa preciosa peça para dois corais. O papa Urbano VIII ficou tão encantado com essa obra que a elevou ao nível do sagrado: determinou que só fosse tocada durante a Semana Santa e apenas na Capela Sistina. Além disso, decretou que qualquer um que copiasse sua partitura estaria condenado à excomunhão. Criou-se então uma lenda, que atraiu mais fatos legendários, como este: Mozart, em 1770, ou seja, com apenas 14 anos, esteve em Roma, ouviu a composição, memorizou-a integralmente e a transcreveu, permitindo, assim, que essa música saísse dos muros do Vaticano.

Gregorio Allegri (1582-1652)

Mas, ainda que se dispa Miserere da lenda e se atente apenas à sua constituição e ao contexto em que está inserido, não tem como não continuar alçando essa obra ao plano divino. É uma das joias que carrega tanto a beleza do Renascimento, que é a sua base, quando do Barroco, para o qual espalha seus valores. Diferente do canto gregoriano, em que o grupo de vozes exclusivamente masculinas assume um único tom e uma única configuração, aqui nós temos a harmoniosa multiplicação vocal em inúmeros perfis sonoros. Sente-se algo do antropocentrismo, já que o homem, como centro do universo, conquista vocalmente o espaço, ainda que seja para se mostrar humilde e pedir o perdão divino, valorizando o Senhor – preocupação do teocentrismo. Basta prestar atenção.
Observe como o coro desabrocha, cantando a expressão essencial da obra, “miserere mei” (“tem misericórdia de mim”). Além disso, note como de 24s até 48s a expressão “misercordiam tuam” (“tua misericórdia”), também importante, vai-se espalhando em diversas combinações pelo coral. Em 1min19, uma lindíssima voz feminina começa a se sobressair, um lampejo do que ela será entre 1min41 e 1min59: uma explosão de beleza que se espalha e se destaca por toda a peça. Ela irá se repetir entre 4min e 4min19, entre 6min13 e 6min35 e entre 8mn35 e 8min55. Faz lembrar o clamor que se eleva para conquistar a glória divina, mas não há como também não associá-la ao amor de Deus que se derrama sobre os fieis. Imagem e semelhança: o caráter divino do criador está na âmago da criatura, por mais impura que ela seja.
O poder humano, voltado para o seu senhor, é notado um pouco em 2min20 pela forma como o coro mostra sua força. Mas ele se mostra mais belo entre 2min44 e 3min08. É arrepiante como os melismas (vogais que se espalham por várias notas musicais) se manifestam, a indicar a capacidade que o homem possui. Esse esquema vai também aparecer entre 7min17 e 7min42. Mesmo contrita, humilhada e arrependida, a criação não deixa de mostrar seu potencial. Sabe-se criatura especial, pois tem em si a essência divina e é ela que pode conduzi-lo à elevação.
Ainda que em tempos laicos, ainda que para espíritos ateus, a sublimidade de Miserere é um alento de esperança bastante útil para os tempos sombrios em que vivemos, pois é capaz de mostrar que, por mais indignos que sejamos (e não se deve pensar apenas em questões religiosas), temos uma essência que é capaz de produzir ações elevadas. Felizmente.





Quinta, 14 de abril, às 19h30,
SESC Ribeirão Preto