sexta-feira, 4 de novembro de 2016

ENEM 2016: pequenas orientações


No próximo final de semana ocorre mais uma edição do ENEM, prova que, apesar dos tropeços dos últimos tempos, conseguiu ganhar importância no universo dos vestibulandos.  Infelizmente, de um valioso termômetro do nível de ensino do País, transformou-se em um gigantesco vestibular, além de ferramenta de marketing de inúmeras utilidades. Entretanto, é mais útil discutir o que o examinando precisa ter em mente neste domingo na prova de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias.
O ENEM avalia competências e habilidades (o que não significa que não tenha vez por outra um lado conteudista). Assim, o que o candidato precisa demonstrar é sua capacidade de leitura e interpretação de diferentes tipos de texto, a matéria-prima da prova. Dessa forma, é importante reconhecer e compreender diversas modalidades textuais e captar como elas funcionam socialmente.  Portanto, deve-se entender, por exemplo, que um cartaz apresenta concisão e ligação entre imagem e código verbal em nome da comunicação imediata, ou que um editorial apresenta elementos argumentativos, que uma propaganda tem preocupação em fixar a mensagem na mente no leitor, que uma charge sintetiza em imagem algum tema de clamor social.
Além disso, o candidato deve saber relacionar diversas espécies de texto, verbais ou imagéticos, buscando não apenas semelhanças, mas também diferenças. Ou então reconhecer neles quais são os objetivos do seu autor e a que público se dirige. Num romance de José de Alencar, por exemplo, a descrição idealizada pode servir para revelar que o escritor ou queria sofisticar o seu leitor, ou tinha em mente que quem degustava sua obra era preocupado com ostentação de luxo. Por fim, deve-se também detectar que estratégias um texto possui para influenciar o seu receptor. Basta lembrar que é comum propagandas de cerveja sempre apresentarem gente feliz degustando o produto, dando a entender que se trataria de um vital elixir da bem-aventurança.
No fundo, o que o estudante vai ter de captar são os mecanismos de funcionamento de um texto, perceber que palavras servem para conectar ou retomar ideias, quais termos têm o dom de resumir ou simbolizar pensamentos ou conjunto de valores. Assim, é de vital importância saber detectar a função da linguagem predominante - quando em Memórias Póstumas de Brás Cubas o narrador confessa no primeiro capítulo que por um bom tempo hesitou se começava sua biografia pelo nascimento ou pela morte, ele fez com que a narrativa discorresse sobre ela mesma, o que configura a função metalinguística. Ou então notar como a linguagem pode ser usada para fazer com que o leitor preste atenção à sua construção, configurando a função poética, muito bem vista, por exemplo, no largo emprego de proparoxítonas em "Balada do Mangue", de Vinicius de Moraes, servindo para representar a situação anormal e canhestra de a feminilidade ser usada para prostituição. Além disso, o aluno pode ser instigado a reconhecer a capacidade que os textos têm de preservar nossa identidade e nosso patrimônio cultural. É o que se vê, por exemplo, no poema "Não Sei Dançar", de Manuel Bandeira, ou no romance Amar, Verbo Intransitivo, de Mário Andrade, em que se apresenta o corso: em ambos é descriTo como se festejava o Carnaval em tempos passados.

Quadro de Portinari retratando a zona de prostituição do Mangue no Rio de Janeiro.
Ainda nesse escopo, quem vai prestar ENEM precisa levar em consideração que a língua é um instrumento social e, portanto, suscetível a variações ligadas ao contexto em que é utilizada. Logo, não existe um padrão único, mas vários, que são os níveis de linguagem, todos legítimos, cabendo apenas observar em que situações são adequados. Deve-se então aceitar que a publicidade, entre tantos outros gêneros, utiliza linguagem coloquial para garantir maior alcance à sua mensagem. O que não significa que o padrão culto perdeu sua utilidade: há momentos em que ele é vital, como na documentação científica ou na redação de regulamentos.
Com relação ao corpo, não se deve esquecer que ele é capaz de carregar e transmitir significados, promovendo a criação de identidade, a integração social e a satisfação de necessidades cotidianas. Quando se dança, por exemplo, pode haver uma preocupação em seduzir, divertir, assim como quando se pratica esporte pode estar-se buscando conhecer pessoas ou mesmo competir e garantir a primazia dentro de um grupo social. Ou ainda garantir melhor qualidade de vida. Nesse aspecto, há sempre uma questão que apresenta um texto que versa sobre a necessidade de mudança de hábitos corporais em nome da saúde.
O ENEM cobra também a análise da arte em suas múltiplas manifestações, todas  legítimas, não importando se é um quadro de Cézanne, um concerto de Bach, um grafite nos muros de São Paulo ou o funk erotizado e marginal dos morros do Rio de Janeiro ou de ostentação da periferia de São Paulo. Seguindo essa linha, é vital entender que o conceito de beleza, essencial para a manifestação artística, não é universal, pois é um fenômeno cultural e, portanto, relativo: tanto é  bela uma top model como Gisele Bündchen quanto uma miss plus size ou mesmo uma mulher de pescoço de girafa da Tailândia.


Dentro do campo artístico, atenção especial deve ser dada à literatura. É importante perceber que esse tipo de produção está sempre inserido em seu momento e por isso revela características do seu contexto histórico, social e político. Assim, deve-se lembrar, por exemplo, que o Romantismo, surgido 14 anos após a independência do Brasil, acaba naturalmente expressando ideais nacionalistas. Ou que o Primeiro Tempo Modernista, surgido numa época em que a industrialização de São Paulo já se estava mostrando marcante, acabaria tendo tendências futuristas. Mas é também importante notar dentro dos textos literários quais concepções de sua função ou do processo de construção eles apresentam: um romântico acreditaria que sua arte é essencialmente emoção e, se a obra conseguiu tocar o coração do leitor, já cumpriu sua missão estética, sem que haja preocupação com a forma, o que é o oposto da visão parnasiana, que põe em primeiro plano o artesanato da palavra, ou do Realismo, que privilegia a crítica social. Além disso, é necessário lembrar que certos temas não se prendem a uma escola literária: a valorização da cultura popular, por exemplo, pode ser vista no Romantismo e no Modernismo, assim como o endeusamento da mulher está presente no Trovadorismo, no Classicismo, no Romantismo e no Modernismo de Vinicius de Moraes.
Ademais, o candidato precisa estar antenado às novas tecnologias, sabendo identificá-las, além de mostrar-se capaz de entender seu funcionamento e o impacto social que elas provocam na comunicação e na difusão de conhecimento. De fato, a internet tem servido para que ideias circulem de maneira espantosa, não apenas nas redes sociais, em que pessoas trocam informações, opiniões e conhecimento, mas também em comunicadores instantâneos (as chamadas mídias síncronas) ou e-mail e fóruns (as chamadas mídias assíncronas). Basta lembrar como as manifestações de rua de junho de 2013 ou mesmo as últimas eleições foram alimentadas pelo Twitter e Facebook. Ou então como o contato com arte e entretenimento ganhou novas dimensões, pois a qualquer hora é possível ver um programa de 2014 ou de 1969 pelo Youtube ou Netflix. Livros podem ser lidos em pdf, músicas ouvidas em mp3, o que faz a produção intelectual alcançar um nível antes inimaginável, ao mesmo tempo em que questões como direitos autorais passam a ser repensadas.
Importante destacar: muita atenção deve ser dada à dinâmica de uma questão do ENEM, muito diferente da de outros vestibulares. Esse grande exame nacional apresentará sempre um texto-estímulo, um enunciado que inicialmente o contextualiza ou o resume e – o mais importante – uma última oração que apresenta um comando que deve ser atendido. Vejamos um exemplo:

(Disponível em www.ccsp.com.br
Acesso em: 26 jul.2010 – adaptado.)

O anúncio publicitário está internamente ligado ao ideário de consumo quando sua função é vender um produto. No texto apresentado, utilizam-se elementos linguísticos e extralinguísticos para divulgar a atração “Noites do Terror”, de um parque de diversões. O entendimento da propaganda requer do leitor
a)      a identificação com o público-alvo a que se destina o anúncio.
b)      a avaliação da imagem como uma sátira às atrações de terror.
c)      a atenção para a imagem da parte do corpo humano selecionada aleatoriamente.
d)      o reconhecimento do intertexto entre a publicidade e um dito popular.
e)      a percepção do sentido da expressão “noites do terror”, equivalente à expressão “noites de terror”.

Note que essa questão exige em primeiro lugar que se entenda que a imagem faz parte de uma propaganda. Além disso, deve-se perceber o que está sendo retratado: um pé com uma etiqueta colada ao dedo, o que remete ao processo de identificação de cadáveres em um necrotério. Dessa forma, o estudante com competência linguística capta uma referência a algo macabro – coerente com o produto divulgado. Além disso, o examinando tem que mostrar inteligência ao notar que a grande jogada do anúncio publicitário é tornar sua mensagem chamativa e para isso é bastante comum o emprego de jogos de linguagem, como o que aconteceu na frase “Quem é morto sempre aparece”, que surpreende ao inverter o dito popular “Quem é vivo sempre aparece”. Assim, depois de feita essa análise, o candidato já tem em mente qual é a resposta antes mesmo de saber as alternativas apresentadas. Seu trabalho será entender a proposta, apresentada na última oração do enunciado, e a partir de então meramente localizar a resposta correta, sem se preocupar com a eliminação das erradas. Quem não entende essa dinâmica acaba muitas vezes caindo em um problema muito comum: achar que mais de uma alternativa está certa. Na verdade, quem incorre nesse erro, ou não conhece a matéria cobrada, ou não entende o texto-estímulo, ou (aqui está a falha comum e mais simples de ser evitada) não leu atentamente o comando apresentado na última oração do enunciado.  
Por fim, há que se tomar cuidado quanto à redação, que tradicionalmente lida com problemas sociais. O examinando deverá primeiramente entender qual a proposta apresentada para então buscar no conjunto de textos-estímulo ideias que embasarão o seu ponto de vista dissertativo, sempre tendo em mente uma intervenção que solucione o problema debatido e que respeite os direitos humanos.
Enfim, a proposta do ENEM, apesar dos tropeços que o arranharam, é muito bem intencionada: avaliar o aluno dotado de competência linguística, aquela que fará, pois, um profissional e um cidadão eficiente. Resta então aO Magriço Cibernético desejar que seus leitores tenham um excelente desempenho neste final de semana. Boa prova a todos!



Resumos, análises, comparações 
e questões de vestibular, todas gabaritadas.
Para comprar o seu, 

domingo, 15 de maio de 2016

Arte imita a vida, vida imita a arte: hoje, qual a utilidade disso?


     Uma dos conceitos mais antigos associados à arte é o de que ela é mimesis, ou seja, cópia da realidade. Daí vem a consagrada ideia de que a arte imita a vida. Seja lá como se dê esse processo. No entanto, algumas obras se tornam tão famosas que acabam abrindo caminho inverso, em que a vida imita a arte. Basta lembrar que em Os sofrimentos do jovem Werther (1774), de Goethe, o protagonista põe fim à própria existência, o que inspirou a maior onda de suicídio de que se tem notícia. No entanto, nos últimos tempos, esses dois conceitos estéticos parecem que não se têm mostrado úteis.
     Duas obras cinematográficas despejaram no imaginário do grande público elementos que, mesmo produzidos pela fantasia, eram baseados na realidade. A primeira delas é Star Wars. Vimos nela como Palpatine ascende aproveitando-se de que o governo do chanceler Valorum estava minado por casos de corrupção (Episódio I). Ganha mais poder ao criar um inimigo à estabilidade da nação (Episódio II), por fim tornando-se imperador, aclamado pelo Senado da República (Episódio III). Valiosa é a declaração da senadora Amidala: "Então é assim que a liberdade morre: com um estrondoso aplauso". No fim, esse congresso será dissolvido no Episódio IV: os manipulados, não mais úteis, são descartados em um contexto em que cidadania não tem mais valor. 



     Arte imita a vida. Inúmeros são os exemplos da História – desde a Roma antiga até a Segunda Guerra Mundial – em que alguém subiu ao poder com a mesma estratégia e com o mesmo discurso: em nome de uma sociedade melhor. Mas não é preciso buscar tão longe um caso que comprove esse fato. Sentimos isso na pele aqui no Brasil. 
     Vida imita a arte. Em nome de uma sociedade melhor, abriram-se as portas do inferno em 2014 e produziu-se um terrorismo eleitoral por todos os lados. Não se discutiam programas de governo, mas atirava-se coquetel molotov por toda parte: candidato A vai acabar com bolsa família, candidato B vai dar o golpe comunista, candidato C vai ser governado por um banco... O resultado das ações desses inocentes (?) úteis (?) que se espalharam pelas redes sociais: dividir o país entre petralhas e coxinhas, ou, na versão mais atualizada, entre mortadelas e coxinhas. Política confundida com torcida de futebol. Qualquer um que tivesse ganhado, não conseguiria unificar o país.



     No meio dessa desordem de uma democracia não amadurecida, forças insidiosas dos dois lados agiram. Em nome de uma sociedade melhor. E com a garantia da lei. Prova disso é que o processo de impeachment foi inquestionavelmente legal. Mas o circo que foi a sua votação provou que o fato era só pretexto.
     Arte imita a vida. Outra obra conseguiu despejar elementos no imaginário das massas: a saga Harry Potter. Uma imprensa estrábica havia tornado inimigos públicos justamente quem lutava pelo bem: Harry Potter e Professor Dumbledore. O primeiro foi obrigado a se ver em ostracismo. O segundo, a ser afastado graças a um regulamento que ele próprio criara. Lei mais uma vez servia de pretexto. Nada mais útil para a instauração de planos insidiosos. Em nome de uma sociedade melhor, Professora Dolores Umbridge impõe uma reforma educacional que não prepara para a vida – adestra. Dementadores têm liberdade para agir. Inúmeros são os exemplos históricos que comprovam que a ascensão do totalitarismo, de direita ou de esquerda, dá-se dessa forma. 


     Vida imita a arte. Vivemos tempos sombrios – frase do ministro da magia em Harry Potter. Em nome de uma sociedade melhor, a assembleia de Alagoas proíbe que professores expressem opiniões em sala de aula, esquecendo que a formação educacional se dá por meio do contato com pluralidade de ideias. Em nome de uma sociedade melhor, elogia-se a tortura, assim como a cusparada. Em nome de uma sociedade melhor, um criacionista assume um ministério responsável pela ciência. Em nome de uma sociedade melhor, uma nuvem conservadora paira sobre um ministério atuante em muitas conquistas sociais, o da educação. Em nome de uma sociedade melhor, aceita-se, relativiza-se, ou partidariza-se a corrupção. 

     As perspectivas não são boas. A arte nos mostra como é a vida e continuamos caindo em erro. Mas como explicar a cegueira ou a visão seletiva que nos toma? Como sair de uma conjuntura que teoricamente é legal e seguiu os trâmites democráticos, pois seus atores foram legitimamente eleitos por nós mesmos? Como aceitar que as palavras de Gregório de Matos, do século XVI, ainda valham hoje: “Neste mundo é mais rico o que mais rapa: “Quem mais limpo se faz, tem mais carepa [caspa] / Com sua língua, ao nobre o vil decepa: / (,,,) Quem menos falar pode, mais increpa: / (...) A flor baixa se inculca por tulipa”. Vida imita a arte. Arte imita a vida. Como dizia o Velho do Restelo, comentando a situação humana: "Mísera sorte! Estranha condição!"

domingo, 8 de maio de 2016

Claro Enigma: que pode o vestibulando senão amar este livro?


A FUVEST 2017 incluiu Claro Enigma, de Carlos Drummond de Andrade, em sua lista de livros de literatura. É uma escolha que de certa forma surpreende, pois a obra apresenta elementos que não costumam fazer parte do repertório cultural ou mesmo da experiência de vida do público recém-egresso do ensino médio. Tal dissociação entre livro e leitor pode gerar dificuldades na compreensão dos textos que compõem o livro.
Estamos acostumados a ver nos vestibulares textos de Drummond com a iconoclastia um tanto narcisista e juvenil de Alguma Poesia (1930), em que se destaca o já mitológico “No Meio do Caminho”. É inegável a importância da coragem do poeta de fazer parte de um grupo que buscou renovar as nossas letras. Ainda assim, a feição poética que ultimamente vinha sendo bastante destacada nos vestibulares era a de Sentimento do Mundo (1940) e A Rosa do Povo (1945), em que o autor inclinara-se para a esquerda.
De fato, é bastante compreensível a guinada que a literatura mundial dera em direção ao socialismo. A humanidade estava sentindo-se massacrada pela crise de 1929, que gerou consequências pela década seguinte. Era também preocupante o Entre Guerras, que indicava um conflito mal resolvido e que por fim acabaria por culminar na Segunda Guerra Mundial. Além disso, mostrara-se agravante a ascensão de regimes totalitaristas como o nazismo e o fascismo. Tornara-se plausível, portanto, em um quadro tão conturbado, a escolha feita por alguns intelectuais, e neles se inclui Drummond, pelas doutrinas políticas de linha marxista.
No entanto, Claro Enigma é de época posterior ao contexto difícil dos anos de 1940. Publicado em 1951, encontrava um quadro de redemocratização e reconstrução. A guerra já havia acabado. Os tão temidos totalitarismos tinham sido derrotados. Ainda assim, o que se percebe na obra é um clima de desencanto, por sinal explicável. O mundo via-se sufocado pelo clima da Guerra Fria e a ameaça de uma extinção apocalíptica nuclear tornava-se cada vez mais iminente. A derrota sofrida pelo fascismo e nazismo não trouxera justiça social – o capitalismo continuava opressivo. E, talvez o mais frustrante para Drummond, seu namoro com o socialismo acabara. O poeta decepcionara-se ao ver que essa doutrina estava tomando um caminho errado ao se mostrar como mais uma forma de totalitarismo. O escritor, que ainda se declarava contra desigualdades, agora via como ingênua a ideia de que a mudança de um sistema econômico seria a chave para transformar o mundo em um paraíso que ignoraria a complexidade do ser humano.
Torna-se claro – não para todos – que Drummond havia amadurecido. Cansara-se do lado público, político, mas não desprezara as preocupações sociais. Passara a elevar-se para questões existenciais, o que alguns na época – os que padeciam da miopia da patrulha da obsessão ideológica – interpretaram como alienação. Seu espírito combativo fora substituído por uma postura resignada, de aceitação das limitações inerentes à condição humana. É o que se vê no vídeo acima, em que Marília Pêra declama “Amar”, um dos poemas que integram Claro Enigma.
Note-se o uso, já a partir do título, do infinitivo. Essa forma retira do verbo marcas temporais, do “tempo presente”, “da vida presente”, “dos homens presentes”, como pregava o mesmo poeta em sua fase combativa em “Mãos Dadas”, de Sentimento do Mundo. Agora, a discussão está posta para além das limitações de época. Assume-se, portanto, o enfoque universal, o que é reforçado por expressões vagas como “criatura” e “criaturas”: “Que pode uma criatura senão, / entre criaturas amar?”. Ou então “ser amoroso”: “Que pode, pergunto, o ser amoroso, / sozinho, em rotação universal, senão / rodar também, e amar?”.
É valioso observar nesse patamar como o emprego no sétimo verso da primeira pessoa do singular (“Que pode, pergunto, o ser amoroso”) não provoca comprometimento da referida universalidade. Trata-se, na verdade, de uma das características mais marcantes do eu poemático drummondiano: sua capacidade de conter o eu de todos nós.
Nesse ponto, ocorre o ponto preocupante anunciado no primeiro parágrafo desta postagem. O eu poético drummondiano serve de porta-voz de todos nós. Mas quem seria esse “todos nós”? “Amar” é um poema tocante, conforme atesta a cara confissão de Marília Pêra: seus olhos se turvam a ponto de atrapalhar a leitura. O conhecimento amoroso que causou as lágrimas da atriz não costuma pertencer ao mundo do vestibulando adolescente. Na verdade, não está universo confessional ao qual está afeiçoado. Faz parte do campo reflexivo da senectude, ao qual Drummond e Pêra aproximam-se.
  

Nesse sentido, a interrogação “Que pode (...)?” na verdade é retórica, funcionando como uma afirmação categórica, que indica um eu resignado que compreende as características inevitáveis do amor. Essa construção frasal equivaleria a “Não resta nada a não ser...”: “Não resta nada a uma criatura a não ser amar”, “Não resta nada ao ser amoroso, sozinho, em rotação universal, senão amar”.
  Adota-se, portanto, uma visão que se avizinha da negatividade, ou da falta de colorido da existência. Torna-se coerente, portanto, o aparecimento de expressões em “Amar” como “deserto”, “inóspito”, “áspero”, “vaso sem flor”, “peito inerte”, “ave de rapina”, “coisas pérfidas ou nulas”, “ingratidão”, “concha vazia”, “procura medrosa”, “amar a (...) falta (...) de amor”, “secura”, entre outras.
Esse pessimismo, ao contrário do que o senso comum interpretaria, não equivale a desistência da vida. Basta notar a declaração “este o nosso destino” para se recusar a hipótese de que o poeta se tenha tornado inerte. Na verdade, percebe-se aqui uma postura assumida em Claro Enigma: a aceitação do caráter negativo irrevogável e inerente ao ser humano. Atitude de poeta amadurecido que não deve ser confundida com passividade, indolência ou alienação. É a compreensão de que, por mais sombria que a perspectiva existencial possa parecer, ela nos pertence e é nosso papel continuar na luta.

domingo, 1 de maio de 2016

"Ain't Got No", de Nina Simone - Exemplo de construção textual

A ligação que os elementos de um texto estabelecem entre si garante o seu significado. Quando esse processo é bem elaborado, vão-se construindo blocos de sentido que mantêm coesão e coerência textuais, como se vê, por exemplo, na composição “Ain't Got No/I Got Life”, de Nina Simone (a obra dessa artista já foi discutida nas postagens de 22 de agosto de 2012 e de 18 de novembro do mesmo ano). Essa peça é capaz de mostrar de que maneira forma e conteúdo podem produzir um casamento sólido e harmonioso. 

 

Em primeiro lugar, deve-se observar como o piano e principalmente a bateria marcam a divisão temática da obra, indicando os blocos de assunto que se materializam em estrofes. Num primeiro momento, enquanto esses dois instrumentos vão tocando suas melodias de repetitivamente, a enunciadora enumera as coisas materiais que não possui:

I ain't got no home, ain't got no shoes
Ain't got no money, ain't got no class
Ain't got no skirts, ain't got no sweater
Ain't got no perfume, ain't got no bed
Ain't got no man

Então a bateria faz um volteio, abrindo caminho não só para a mesma melodia, mas também para outra estrofe, que introduz uma nova enumeração, agora ligada a elementos que denotam relacionamentos sociais que a enunciadora diz não possuir:

Ain't got no mother, ain't got no culture
Ain't got no friends, ain't got no schooling
Ain't got no love, ain't got no name
Ain't got no ticket, ain't got no token
Ain't got no God 

Nesse ponto, em que se toca no sagrado (God), a composição prepara-se para seu clímax, já que o eu poemático atingiu um ponto crítico de profundo esvaziamento. Não é à toa que se sente um crescendo na instrumentação por meio do qual um caráter reflexivo entra em cena. As interrogações retóricas permitem entender que o processo de negação funciona como escada para se vislumbrar o que realmente importa:

Then what have I got?
Why am I alive anyway?
Yeah, what have I got nobody can take away

Atingido o clímax, ocorre a primeira pausa da música. Após ela, uma nova melodia surge, indicando que a enunciadora realizou um sábio processo de desapego, encontrando o que realmente é importante para uma existência plena e feliz:

I got my hair, I got my head
I got my brains, I got my ears
I got my eyes, I got my nose
I got my mouth, I got my smile

I got my tongue, I got my chin
I got my neck, I got my boobs
I got my heart, I got my soul
I got my back, I got my sex 

I got my arms, I got my hands
I got my fingers, got my legs
I got my feet, I got my toes
I got my liver, got my blood 

Apesar de a voz que se manifesta aqui cantar esse trecho em três blocos, talvez por questão de fôlego, a instrumentação não se altera, indicando que se trata da mesma realidade e, portanto, do mesmo assunto: o que no fundo nós temos é muito pouco – apenas o corpo. É então que surge outra pausa, importantíssima, para abrir caminho para mais uma estrofe e, portanto, para mais uma matéria:

I've got life
I've got my freedom
I've got the life
I've got the life
And I'm gonna keep it
I've got the life
And nobody's gonna take it away
I've got the life

Esse último momento, com voz e instrumentos musicais atingindo o seu máximo, funciona como conclusão, apresentando o que realmente vale em nossa existência: a vida em si, sem rodeios e ilusões materialistas. O pouco (para os olhos dos não iluminados) que na verdade é muito (para os olhos dos iluminados).
O exemplo aqui analisado, portanto, mostra-nos como a organização textual é vital para a produção de um discurso eficiente, qualquer que seja a realidade abordada. Esse é um ponto que devemos ter em mente tanto para a leitura quanto para a redação.




domingo, 24 de abril de 2016

Fotojornalismo: manipulação e distorção - Parte II

Na última postagem (17 de abril de 2016), discutiu-se de que maneira o fotojornalismo utiliza a ligação entre elementos visuais para produzir significado. Outros exemplos dessa atividade serão abordados hoje, como o do fotógrafo israelense Marc Israel Sellem: Retrata-se aqui o encontro entre a chanceler alemã Angela Merkel e o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu. Observe-se a roupa escura, sóbria dos dois. Note-se ainda ao centro a bandeira israelense ao centro, com o azul que se reflete na blusa que a líder europeia tem sob seu terninho. Esse mesmo jogo pode ser visto nas laterais da foto entre a escondida bandeira da Alemanha, que tem o vermelho refletido na gravata do político de Israel. Há uma harmonia aqui, inclusive pelo fato de o azul, central, chamar a atenção na política, e o vermelho, periférico, estar parcialmente oculto pelo braço do político. Esse intercâmbio de elementos parece sugerir a união entre dois povos que no passado eram inconciliáveis. Poder-se-ia pensar que feridas estavam finalmente cicatrizadas. No entanto, o fotojornalista põe denotativa e conotativamente sombra sobre esses fatos. O dedo erguido de Netanyahu projeta um falso bigode sobre Merkel, fazendo vir à tona a imagem de Hitler. Novos significados surgem: o olhar de soslaio (malícia?) e o gesto impositivo do israelense fazem com que não se veja mais o olhar da alemã como sereno, mas como de alienação à troça que se está fazendo ou, se se levar em conta a postura curvada dela, como de abatimento diante da triste e irrevogável realidade: a Alemanha ainda não conseguiu apagar seu passado sombrio.
O mesmo tipo de abordagem, em que o autor sabe aproveitar na rapidez dos acontecimentos ingredientes fortuitos para a produção de sentido, pode ser visto a seguir: 



Aparentemente, trata-se de uma cena sem grande riqueza: funcionários da FIFA envolvidos em corrupção foram presos e, no momento flagrado, ao serem conduzidos para a polícia, são protegidos, em nome da preservação de identidade contra os olhares de abutre da imprensa. É interessante o contraste entre o escuro do carro e da roupa dos figurantes, tanto dos protetores quanto dos infratores, e a brancura do lençol. Aliás, quase todo o ambiente é marcado pela claridade, quebrada apenas pelo verde da árvore (sinal de vida?) e pelo escuro dos elementos ligados ao processo criminalístico. Haveria a significação de tempos mais luminosos chegando ou enxergar isso seria exagero de interpretação? No entanto, o que é bastante marcante na foto em análise é o escrito na placa do estabelecimento: “vanity”, que em inglês quer dizer “vaidade”. Funcionaria como um carimbo, atestando o pecado capital responsável pelo lamentável desvio de caráter.
Outro exemplo bastante valioso é o da foto do dinamarquês Mads Nissen, que ganhou o World Press Photo em 2015: 



A imagem acima enfoca um momento íntimo de um casal homoafetivo. Basta notar o carinho delicado que o curvado dedica ao deitado, que se entrega ao toque, fechando os olhos. Essa ideia de privacidade também está sugerida pela cortina fechada e pela luminosidade fraca. No entanto, essa mesma iluminação produz um jogo de luz e sombra que serve para destacar a escuridão, o que soma à imagem um caráter sombrio. Quando se tem ideia de que essa fotografia foi produzida para retratar a homossexualidade na Rússia, sua significação ressalta. Trata-se de uma crítica aos tempos soturnos em que vivem os russos, com o homossexualismo enfrentando cerceamentos e perseguições alimentados até mesmo pelas esferas governamentais.
Por fim, um exemplo da Associated Press bastante intrigante, pois que lembra as intervenções artísticas do politizado Banksy:

  
Focaliza-se a repressão da polícia turca a um protesto realizado em Ankara por estudantes universitários em 2014. A beleza do campo de delicadas flores amarelas produz um efeito bastante agradável aos olhos, reforçado pela harmonia cromática das figuras de azul. No entanto, o cassetete erguido de uma delas não nos deixa iludir: um jovem, escondido pela vegetação, está apanhando. Assim, entendemos que o outro soldado está procurando mais um alvo. Produziu-se então uma peça de estranha beleza poética marcada pela ironia, o que provoca uma crítica incômoda do mesmo nível de cenas de Laranja Mecânica (1971), de Stanley Kubrick.
Enfim, os casos apresentados nesta postagem e na da semana passada foram suficientes para mostrar que o fotojornalismo é capaz de gerar sentido pela manipulação de elementos visuais. O problema está na fronteira bastante tênue entre manipular e distorcer. Essa é uma questão complexa que entra no mérito de definições como de viés (postagem de 24 de março de 2013) e de realidade, que ainda serão discutidas aqui em momentos oportunos. Por ora, basta ter em mente que o mais aconselhável é o desenvolvimento de capacidade crítica constante e alerta para não se deixar levar pelo senso comum – ou, pior, pelo senso de um grupo jornalístico.


domingo, 17 de abril de 2016

Fotojornalismo: manipulação e distorção - Parte I



Já foi dito aqui nO Magriço Cibernético muitas vezes, e nunca além do necessário, que o sentido de um texto é garantido pela ligação entre os elementos que o compõem. Nas postagens anteriores (03 e 10 de abril), verificou-se que a manipulação desajeitada desses ingredientes produz resultados desastrosos e indesejados. Hoje, começaremos a ver exemplos do fotojornalismo de como efeitos surpreendentes podem ser obtidos graças ao bom manuseio dessas partes integrantes.
O primeiro exemplar a ser analisado foi publicado na primeira página do caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo de 03 de abril de 2016, em matéria sobre a nova fase da novela Os Dez Mandamentos. O fotojornalista Ricardo Borges, da Folhapress, conseguiu um jogo de dissonância bastante chamativo entre a atmosfera de Bíblia criada pelas roupas e pelo set de filmagem e a atmosfera de tecnologia e de cultura dos selfies criada pelo celular. Haverá aí a mensagem subliminar da impossibilidade de se resgatar com fidelidade o passado, pois este sempre estaria contaminado pelo espírito do tempo que o observa?
No entanto, essa forma de trabalho editorial não é nova, como se comprova na já clássica imagem abaixo:



Vemos acima o então presidente Jânio Quadros, que governou o Brasil de forma polêmica em 1961. Todo o seu gestual desarticulado acaba passando muita informação valiosa. O fato de rosto, tronco, perna esquerda e perna direita assumirem cada um posições diferentes parece metaforizar o caráter errático das atitudes políticas desse governante, como os historiadores podem atestar.
Outra imagem interessante é a seguinte:

  
Nessa foto fica claro no que se baseia uma boa peça do fotojornalismo: captar o momento exato, às vezes com manipulação de ingredientes, de maneira a criar uma mensagem subentendida. No presente caso, a luz incidindo sobre os dedos de José Serra produz atrás dele uma sombra que imita chifres, sugerindo a imagem desse político como malévolo ou até mesmo diabólico.
Nesse ponto, salta uma questão preocupante: até que ponto essa manipulação pode resultar em distorção da realidade? Pode-se realmente acreditar que o referido político teria um lado demoníaco? Para não tornar essa discussão partidária, observe-se outro exemplo, vindo de outro espectro político:


A foto acima, de Pedro Ladeira, serviu para ilustrar matéria de 14 de fevereiro de 2015 da Folha de S. Paulo (p. A5) a respeito de suspeita de que o então ministro da justiça, José Eduardo Cardozo, teria tido encontros com advogados dos réus da Lava Jato. A forma como essa autoridade e o procurador-geral da República Rodrigo Janot foram flagrados, com mãos cobrindo boca, sugere uma disposição para trabalhar às ocultas, o que contamina a reportagem, pois deixa a entender que a reunião com os advogados foi uma atitude escusa.
A análise dos exemplos acima deixa reforçada uma dúvida: ao captar um flagrante que represente não um momento específico, mas a conjuntura em que está inserido; ao confirmar a tão batida máxima de que uma imagem vale mais do que mil palavras, até que ponto o fotojornalismo estaria a serviço de uma informação confiável?  Para complicar essas considerações, veja-se mais uma foto: 



O fotógrafo Wilson de Sousa Jr, do Estado de S. Paulo, captou o instante em que Dilma Roussef participava de uma cerimônia em 2011 na Academia das Agulhas Negras. Era uma semana terrível para a presidente, pois acabara de, no espaço de oito meses, afastar o quinto ministro graças a acusações de corrupção. A chefa de estado havia ganhado a incômoda fama de faxineira, mas a foto, que chegou a ser premiada na Espanha, acabou criando outra realidade: a de uma líder atacada pelas costas. Além disso, sua postura inclinada e retraída sugere enfraquecimento. Há muito mais ainda a interpretar, como o verde-amarelo do pulso do atacante, a luva branca, o ambiente militar em que a vítima se encontra, o verde (e não o vermelho) de sua roupa. Entretanto, todos esses elementos reforçam a discussão problemática que se está tendo a respeito da linha tênue entre manipulação e distorção. No plano denotativo, a espada está logo atrás da comandante. No entanto, somos levados (ou iludidos) pelo fotojornalista a crer em outra realidade, o que criou leitura diferente no plano denotativo.

Enfim, encontram-se em todos esses exemplos fatores que colocam em foco como a manipulação de elementos constitutivos de um texto pode criar significados a refletir, reforçar ou até mesmo distorcer a realidade em que se está inserido. Essas questões continuarão a ser discutidas na próxima postagem.

domingo, 10 de abril de 2016

A construção do texto e os aprendizes de feiticeiros




Na semana passada (post de 03 de abril de 2016), foi discutida a importância da consciência de que o sentido de um texto é garantido pela ligação que se estabelece entre os elementos que o compõem. Dessa forma, a manipulação errada desse ingrediente produz efeitos indesejados e até desajeitados, como os de um atrapalhado aprendiz de feiticeiro. Vimos exemplos desse descuido no âmbito das frases e orações. Agora veremos como tais podem comprometer a estrutura geral de um texto.
O artigo acima, de 19 de outubro de 2014, é de Inácio Araújo, que escreve coisas bastante interessantes para a Folha de S. Paulo. No entanto, na peça em análise, seu condão não foi feliz. Quando se olha o título e a foto que ilustra a matéria, sabe-se que se vai discutir A Lista de Schindler (não se entende por que aspas simples no título e duplas no corpo do texto, quando o ideal seria apenas o destaque em negrito ou itálico...). O primeiro parágrafo apresenta uma ótima ideia, que merecia ser bem mais desenvolvida: a transformação do sagrado, marcado pelo inatingível e pelo insuportável, em espetáculo. Quanto tema delicioso aqui! Para começar, há muito o que se discutir na diferenciação entre inatingibilidade e suportabilidade. Ou, se o autor está considerando essas categorias como equivalentes, há mais ainda para debater (o problema é que a forma sintética do texto, quase epigramática, não torna claras as ideias: essas categorias são divergentes ou convergentes?).
O segundo parágrafo compromete mais ainda o desenvolvimento do artigo. Fala-se de uma passagem de Levi para Spielberg, excelente jogo de palavras, que não tem razão de aparecer em um parágrafo isolado, já que é ainda parte do raciocínio do parágrafo anterior. Por que ficou solto?
Então, deparamo-nos com o terceiro parágrafo, que começa justamente com a expressão “na verdade”, anunciadora de mudança de rumo – o que de fato acontece; passa-se a falar de A Fuga das Galinhas. E o título e a foto, que anunciaram A Lista de Schindler? Pipoqueia-se tanto tematicamente que é natural que, quando no final desse trecho se diz que “é um filme mais digno sobre o assunto”, fica-se na dúvida: qual assunto? O sagrado? O insuportável? O inimaginável? O espetáculo? A passagem do sagrado para o espetáculo?
O resto do artigo não muda muito. O quarto parágrafo apresenta um insight bastante interessante (a consciência do próprio extermínio), mas a expressão que o introduz, a mesma que abriu o parágrafo anterior, reforça que se está tomando mais outro rumo. O quinto parágrafo faz um gancho entre os dois filmes, mas continua desarticulado do conjunto e se mostra superficial, pois insiste em lançar um tema, sempre interessante, e não aprofundá-lo. Além disso, não se entende por que está separado do anterior. A própria expressão “essa animação”, que o inicia, sozinha não faz sentido, ou seja, não garante a autonomia do parágrafo. O sexto parágrafo é o tiro suicida e inconsciente de misericórdia, pois lança um tema dissonante que surge do nada e é jogado ao nada, pois, ao mesmo tempo em que puxa a abordagem para as alturas, já que fala sobre o sentido e a consciência de nossos hábitos essenciais, é largado, não é desenvolvido.
  
Mickey como o desastrado Aprendiz de Feiticeiro em Fantasia (1940).

Seis parágrafos, seis temas diferentes. O jornalista parece que pegou o espírito televisivo e começa a zapear pelo assunto, sem se deter em nenhum, tornando seu texto superficial. Pode-se desculpá-lo lembrando o que Rubem Braga já havia mencionado: a pressão do meio jornalístico, preocupado com produção periódica, sem se importar com inspiração. No entanto, quando o grande cronista havia tematizado isso, foi com a intenção de falar sobre a falta de assunto. Aliás, Braga tinha a maestria de conseguir superar esse estresse e redigir até mesmo sobre o vazio temático – caso bastante diferente de Inácio Araújo, que está com excesso de matéria, mas a apresenta de forma desarticulada e sem profundidade. Lembra o descompromisso da geração do ficar, que se envolve emocionalmente com tantos em uma só noite, mas sai das baladas vazia afetivamente. Estaria o autor atendendo ao universo de valores de seu presumido público?
Enfim, é importante ter em mente que o sentido de um texto não se dá apenas pelas ideias que ele apresenta. O exemplo acima analisado é eficaz em provar isso. É necessário que se estabeleça uma adequada relação entre seus constituintes, do contrário, o raciocínio estará comprometido e o esforço da escrita estará inutilizado.



Quinta, 14 de abril, às 19h30,
SESC Ribeirão Preto





domingo, 3 de abril de 2016

A magia da construção de um texto




Sempre necessário se faz lembrar que um texto é mais do que um amontado de palavras – seu sentido é estabelecido pela ligação que se dá entre elas.  Essa regra, essencial para a compreensão do que se lê, torna-se tão automática que, por causa de ineficiência de redação, muitas vezes somos levados a fazer interpretações inadequadas. É o que se vê em alguns exemplos hilários retirados a esmo da internet nos últimos tempos. O primeiro deles veio de um grande portal, o G1.



Além de haver uma imprecisão por causa de ambiguidade na manchete (qual foi o pedido especial do Papa: a cesta de ovos para Santa Clara ou o aparecimento do sol?), estabelece-se uma conexão estranha de ideias. O raciocínio mais lógico, e cabível para um jornalismo sério, dá conta apenas de uma relação temporal: a solicitação foi feita em um momento anterior ao do aparecimento do astro-rei.  No entanto, a composição possibilita que se deixe a entender – erro que deve ser evitado para um órgão de imprensa sério – uma correlação causal-consecutiva: o sumo pontífice fez um pedido (causa) e o céu se abriu (consequência). A fé pode fazer com que alguém acredite que um líder religioso seria capaz de alterar condições climáticas, mas essa ordem de pensamento não deve existir em um órgão respeitável de imprensa.
Mais um exemplo vem de outra página do mesmo grupo G1, a Ego, voltada para notícias ligadas a celebridades:




O problema nesse caso está na ordem desajeitada em que as palavras foram dispostas, gerando um sentido desagradável. A intenção do redator era dizer que Beatriz (informação 1), filha de Fátima Bernardes (observação especial sobre a informação 1), aparece na foto com os jogadores Neymar Jr e Oscar (informação 2). No entanto, a inoperância redacional deixou a entender que Beatriz era filha de Fátima Bernardes com Neymar Jr – ou, pior e mais absurdo, filha que Neymar Jr e Oscar geraram em Fátima Bernardes. Um simples ajuste teria evitado essa situação constrangedora: “Beatriz (filha de Fátima Bernardes) com Neymar e Oscar” ou “Beatriz, filha de Fátima Bernardes, posa diante de Neymar e Oscar”, entre tantas outras possibilidades menos lesivas.
O exemplo a seguir foi colhido de um perfil oficial no Twitter de um órgão governamental (e que deve, portanto, zelar pelo respeito aos direitos humanos) – o do metrô do Distrito Federal:
  

 Eis mais uma caso em que a má manipulação das palavras provocou um efeito que pôs a perder a intenção positiva da mensagem. A proposta – louvável – era a defesa da integridade física e moral da mulher, que vem sendo desrespeitada em vários momentos do cotidiano, inclusive no massacrante transporte público. No entanto, a simples presença do vocábulo “outro” detonou a índole benévola do emissor da mensagem, pois fez com que se entendesse que, para o seu ponto de vista, ser mulher seria um entre tantos outros tipos de deficiência. Como evitar essa gafe? Uma mera troca de “outro” por “qualquer” ou então a eliminação de qualificações para “deficiência”: “para mulheres e pessoas com deficiência”. 
Enfim, esses três exemplos – entre tantos outros colhidos de nosso dia a dia – mostram que o sentido de um texto é garantido pela magia da articulação de palavras. Fácil se torna perceber que a manipulação inadequada desses ingredientes é capaz de produzir efeitos desajeitados típicos de um infeliz aprendiz de feiticeiro.