domingo, 29 de março de 2015

Bach: o engrandecedor de almas


Em 31 de março (ou 21 de março, conforme o calendário adotado) comemoramos o nascimento de Johann Sebastian Bach (1685-1750), para muitos o maior nome da música erudita. É por esse motivo que O Magriço Cibernético lembra uma data tão valiosa trazendo algumas obras capazes de mostrar o talento desse grande artista.
A primeira delas, exibida acima, é o Magnificat (1723), cuja letra é bastante significativa. Trata-se da primeira frase que Maria diz, na Bíblia, ao receber do anjo Gabriel a notícia de que será mãe de Cristo: “Magnificat anima mea Dominum” (“Minha alma engrandece o Senhor”). De certa forma, serve como representação do papel de Bach na cultura universal: sua habilidade elevou a música a padrões praticamente divinos.


Na verdade, a técnica desse compositor atingiu níveis folclóricos ou até mesmo míticos no universo musical. Reza a lenda quem em 07 de maio de 1747 Bach encontrou-se com o rei Frederico II da Prússia, que exigiu do artista a criação de uma música a partir de um tema até então visto como infrutífero. A intenção do monarca, ao nem deixar Bach descansar de tão longa viagem que acabara de fazer, era bastante clara: rebaixá-lo, mostrando-o como um músico ultrapassado. Inútil: o artista conseguiu criá-la de improviso. No entanto, o regente, não contente, exigiu mais outra peça. O desafiado sabiamente pediu um tempo para descanso – ou para fugir da armadilha. Dias depois, a humilhação mudava de mão: Bach apresentara não uma, mas mais de uma dúzia de músicas (uma delas uma sonata completa), todas variações do mesmo tema.
O mais incrível é que essas habilidades eram fruto de um cérebro extremamente prático. Bach certa vez se queixou da falta de falecimentos onde estava, pois isso diminuía a quantidade de encomendas musicais, acarretando-lhe prejuízo econômico. É interessante ter noção da existência de um espírito tão pragmático para paradoxalmente desdivinizar sua produção e enaltecê-la de forma mais justa. Em outras palavras, devemos tirar os clichês simplistas e, assim, enxergar melhor sua grandiosidade.
Como exemplo desse esforço de desembaçamento da visão sobre a obra de Bach, basta lembrar a arquifamosa Tocata e Fuga em Ré Menor (composta entre 1703 e 1707). Trata-se de uma peça a que sempre se associou a ideia de soturnidade, de fantasmagoria, chegando-se a imaginar que fora composta em algum momento conturbado. Na verdade, sua criação se dera em uma das fases mais felizes do compositor. E sua intenção era apenas experimentar, como em um exercício lúdico, as múltiplas possibilidades de emprego do órgão (ou do violino, já que há quem imagine que ela tenha sido composta originalmente para tal instrumento):


Talvez esteja neste ponto a riqueza da arte de Bach: ele consegue ser tão excelso partindo de princípios tão pragmáticos, muitas vezes praticamente matemáticos. É o que se nota em O Cravo Bem Temperado (1722), conjunto de peças para teclado composto apenas para lição ou mero entretenimento. Mais uma vez, sua arte foi de suplantação, a ponto de, no exemplo a seguir, nascer de uma mente protestante e acabar, no nosso imaginário (graças, 137 anos depois, ao compositor francês Charles Gounod), sendo associada à Virgem Maria:


Dessa forma, podemos entender que a arte de Bach é capaz de extravasar limites. Não é à toa que nos idos dos anos de 1970 a sonda Voyager, da NASA, carrega em um disco dourado o Concerto Brandemburguês número 2 (1721), para que, na remota hipótese de a astronave ser interceptada por civilizações alienígenas, permita que se conheça o que de melhor a espécie humana produziu. A gravação que será ouvida pelos extraterrestres é exatamente a seguinte:


O inusitado é que esse e os outros cinco concertos de Brandemburgo, considerados o mais perfeito exemplo da música barroca, foram apresentados por Bach a Cristóvão Ludovico de Brandemburgo-Schwedt, marquês de Brandenburgo, que nem lhes deu atenção, deixando-os esquecidos em sua biblioteca, só sendo redescobertos em meados do século XIX. Hoje, nem se fala mais desse nobre, ao passo que o desprezado atingiu fama que se poderá dizer interestelar.
A conclusão a que se chega é necessariamente de estilo repetitivo, pois a música de Bach é de engrandecimento múltiplo. Não apenas ele engrandeceu esse trabalho estético, como se engrandeceu como homem e artista. Engrandeceu também a relação entre o engenho e a arte, permitindo que, a partir de ingredientes tão pragmáticos, o excelso fosse alcançando. O resultado final é o engrandecimento de nossa alma, que assume nada menos do que a obrigação de engrandecer nesta data esse inigualável músico. Só ele é capaz de nos fazer dizer, com dignidade, como na música a seguir, continuação de Magnificat, que “o meu [nosso] espírito se exultou” (“Et exultavit spiritus meus”):




domingo, 22 de março de 2015

O Sorriso de Mona Lisa: uma lição de texto

A eficiência tanto na leitura quanto na redação só é obtida quando se tem em mente que um texto não é apenas um amontado de frases e ideias, mas um conjunto que se sustenta pela ligação entre tais elementos. Essa é uma regra sagrada que precisa ser lembrada sempre, pois dela depende a compreensão do mundo e de nosso papel nele. E para exemplificação de como esses mecanismos de articulação garantem significação, seria interessante a análise do arquifamoso Mona Lisa, que Leonardo da Vinci (1452-1519) pintou por volta de 1505.
Inicialmente, quando olhamos para a paisagem que está atrás da Gioconda, notamos um fenômeno interessante: a linha do horizonte à direita é mais alta que a da esquerda. Cria-se então uma perspectiva impossível, estando o ponto de vista da direita mais alto que o da esquerda.
No entanto, a distorção provocada pelos horizontes impossíveis não é uma falha. Na verdade, é um ingrediente muito bem planejado, uma peça importante na articulação do texto imagético e que contribui para sua significação. Para comprovar essa qualidade, basta observar que não é à toa que a união das duas perspectivas se dê atrás da cabeça da nobre florentina. Trata-se de uma técnica que destaca justamente essa região do corpo da retratada.
Mas, qual a finalidade de se realçar o rosto da Gioconda? A resposta a essa questão é guiada pelo próprio quadro, que orienta a nossa visão. O horizonte à direita faz nosso olhar movimentar-se para cima, ao passo que o horizonte à esquerda produz um encaminhamento contrário. Assim, temos a impressão de que os lábios de Mona Lisa se elevam ligeiramente à direita, como se estivessem prestes a sorrir. E esse gesto é dirigido a nós, o que se nota pelos olhos, coincidentemente (ou não) também voltados para direita.
Dessa forma, o sorriso de Mona Lisa é um signo que não funciona sozinho. Se eliminarmos todos os elementos do quadro e ficarmos apenas com os lábios da Gioconda, já não teremos mais certeza, muito menos a impressão de que ela está sorrindo. Esse gesto só aparece quando conjugado a outros elementos, como os horizontes e o olhar da florentina.

A conclusão que se tira é cabal e igualmente vital para o grato trabalho de leitura e redação: Mona Lisa só sorrirá para nós, ou seja, um texto só entregará seu sentido quando observarmos a ligação que há entre os diferentes elementos que o compõem.