domingo, 26 de maio de 2013

"As Mariposa" - a legitimidade do português não-padrão

No post de 01 de maio de 2013, por meio da letra de “Meninos e Meninas”, do Legião Urbana, viu-se que é errada a ideia de que existiria um português errado simplesmente por causa da troca de pessoas e de pronomes. Ficou claro que a língua, como uma manifestação humana, tem várias formas de se concretizar, o que faz com que o mais importante não seja se preocupar com certo ou errado, mas com o adequado ou não ao contexto em que se está usando a comunicação. Assim, situações informais pedem uma linguagem mais próxima do coloquial, enquanto as formais exigem um apego à norma culta.
O problema, como foi dito, é que a norma culta, que é ensinada em sala de aula nas aulas de Gramática, é a mais bem conceituada por ser associada à fala das elites, dos indivíduos que têm prestígio na sociedade. Não que esses de fato a dominem ou – pior – a usem. Mas qualquer pessoa que queira ser aceita e até respeitada precisa utilizar esse padrão linguístico. Preconceito, mas um fato.
É também uma visão distorcida a ideia de que só a norma culta tem regras, só ela é organizada e lógica, por isso mereceria o status de linguagem bem constituída. As demais variedades da língua, chamadas de português não-padrão, também são sistemáticas, o que equivale a dizer que não são erradas. Basta conferir a letra dessa joia composta por Adoniran Barbosa e cantada pelos Demônios da Garoa.

AS MARIPOSA
As mariposa quando chega o frio
Fica dando vorta em vorta da lâmpida pra si isquentá
Elas roda, roda, roda e dispois se senta
Em cima do prato da lâmpida pra descansá

Eu sou a lâmpida
E as muié é as mariposa
Que fica dando vorta em vorta de mim
Todas noite só pra me beijá

- Boa noite, lâmpida!
- Boa noite, mariposa!
- Pelmita-me oscular-lhe as alfácias?
- Pois não, mas rápido porque daqui a pouco eles mi apaga.

 Vale ressaltar a força que o padrão culto tem: o nome da composição é “As mariposa”, mas constantemente seu título vem grafado respeitando a norma culta (“As mariposas”), provavelmente porque a forma escrita é mais facilmente presa aos ditames gramaticais.
  
Adoniran Barbosa no Viaduto do Chá, em São Paulo

Mas detenhamo-nos na análise desse padrão linguístico para provar que não se trata de manifestação de erro, mas de um código com suas regras de funcionamento. A primeira delas diria respeito a economia, o que se percebe na flexão do plural. Observe que essa marca aparece apenas na primeira palavra de uma expressão: “as mariposa”, “as muié”, “elas roda”, “todas noite”. O único momento em que essa regra não é aplicada está na fala da mariposa: “Pelmita-me oscular-lhe as alfácias”. Entretanto, trata-se de uma situação de conquista amorosa, momento em que estamos acostumados a nos enfeitar um pouco mais, inclusive no linguajar. Nesse ponto, o humor do texto estaria na sofisticação – observe-se o preciosismo de “oscular” substituindo “beijar” – misturada ao não-padrão “pelmita” e à confusão entre “faces” e “alfácias”.
Enfim, tal caráter sintético faz pensar que a norma culta é redundante, prolixa, pois pluraliza todos os termos de um sintagma. Além disso, a tão cultuada língua inglesa obedece a princípio semelhante. Basta lembrar que só se pluraliza nesse idioma o substantivo: “the yellow books”, “the red cars”. Portanto, a economia não é erro, mas um princípio válido.
Quanto às formas verbais “isquentá”, “descansá”, “beijá”, a única novidade que está ocorrendo é a transcrição em linguagem escrita de algo que há tempos acontece na falada: verbos no infinitivo não têm o seu “r” final pronunciado pela gigantesca maioria dos falantes brasileiros. O valor dessa consoante é tão desprestigiado que talvez por isso ela seja rapidamente eliminada quando usamos um pronome oblíquo em ênclise: “esquentá-lo”, “descansá-lo”, “beijá-lo”.
Além disso, a troca entre “r” e “l”, como ocorre em “vorta”, é um fenômeno bastante comum na história da língua portuguesa. Camões já declarava, no soneto “Está o lascivo e doce passarinho”, que “o Frecheiro cego [o] esperava”. Gil Vicente usava “Berzabu” em lugar de “Belzebu”. E será coincidência que apareça aqui a forma “dispois”, tão comum na época desses escritores?
Por fim, a simplicidade da fala popular faz com que o “lh” seja trocado por uma semivogal “i”, tudo em nome da lei do menor esforço, que comanda o falar humano: “muié”, “moiado”, “paia”. Tal princípio também norteia a forma “lâmpida”. Por se tratar de uma proparoxítona, forma estranha ao português, o “a” foi trocado pelo “i”, que exige menos esforço para ser pronunciado, quase tornando o “p” uma consoante muda. Princípio semelhante ocorre no inglês com boa parte das extensas palavras terminadas em “able”, em que o “a” ganha som de “i”: “unthinkable”, “shrinkable”, “uncapable”.
Enfim, graças à letra de “As mariposa”, percebemos que os diferentes níveis de linguagem são manifestações legítimas de comunicação, pois carregam seu próprio conjunto de regras e mecanismos de funcionamento, o que torna sua análise um exercício bastante prazeroso. E uma forma de respeito à cidadania, pois implica a aceitação da diversidade humana.


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sexta-feira, 10 de maio de 2013

Mama: um belo estranho filme de terror


No post de 19 de setembro de 2012 abordou-se uma característica marcante do gênero terror. Trata-se da função de lidar com o interdito, aquilo que está próximo, mas não é reconhecido, ao contrário, é colocado para debaixo do tapete. Tal tipo de narrativa acaba, pois, extravasando esse proibido de forma simbólica e tão assustadora quanto o nível do recalque que está ocorrendo no meio que descreve (recalque: ato que faz com que certas condutas não admitidas sejam retiradas do consciente e atiradas no inconsciente). Esse processo permite que muito do gênero seja moralista, ou seja, tenha sempre uma mensagem que o consciente não quer admitir. A maioria do público não a percebe, mergulhada que está na necessidade catártica de experimentar o medo. Mas quem a capta, nota no texto um mecanismo de protesto, de rebeldia contra a censura do consciente, contra as mentiras que montamos contra nós mesmos.
Guillermo del Toro demonstrou maestria na manipulação desse gênero com Mama (2013). É um filme que mostra ter apreendido a  nova estética da sua espécie, o que se vê pela incorporação das mídias do século XXI à trama, da forma torta com que a assombração aparece, das imagens truncadas em que a entidade maligna surge, da observação do cotidiano doméstico em que se espera que algo anormal vá acontecer, tudo procedimentos vistos em O Chamado (2002), O Grito (2002) e Atividade Paranormal (2007). Mas o que interessa neste post são os aspectos temáticos. Inicialmente, a chave para a interpretação deles vem da fala de uma personagem que é funcionária de cartório e que se diz não-religiosa – fantasmas são erros da essência humana condenados a se repetir enquanto não são resolvidos. Definição que casa com perfeição à de Dana Scully (Gillian Anderson), a detetive de Arquivo X, saudoso seriado dos idos de 1990: assombrações são projeções do inconsciente. Em suma, são o extravasamento do recalque.
A partir desse ponto, quem não assistiu a Mama e não quer se deparar com spoilers deve parar a leitura, ver o filme e só então retornar aqui.


 O fantasma de Mama tem seu território anunciado já nas cenas iniciais do filme. Fala-se da crise norte-americana de 2008, que é comparada à de 1929 – o erro que se repete. Instaura-se o conflito entre o sentimento de posse e os relacionamentos humanos, que gera um surto psicótico – Lucas (Nikolaj Coster-Waldau) assassina seus sócios, volta para casa e mata sua esposa. Então sequestra suas duas filhas. O problema é que seu carro (cuja placa contém a palavra DAD – papai, em inglês –, o que nos faz perceber que o filme é cheio dessas pistas) derrapa em uma estrada por uma região montanhosa (semelhante à de O Iluminado (1980) – coincidência?), despencando em uma floresta – o grande símbolo do nosso eu-interior, para onde nos recolhemos nos momentos de dificuldade. Pai e meninas chegam a uma cabana, mais outro símbolo caro da procura por uma verdade interior. Lá dentro, apesar do abandono do local, nota-se a decoração que nos leva entre os anos de 1950 e 1960, época gloriosa dos EUA. Parece uma busca do refúgio do bem perdido. Procura inútil, pois é uma evasão em direção ao inalcançado, já que, como se disse, está perdido. Vemos então um pai chorando e mais fragilizado do que sua filha mais velha, Victoria (Morgan McGarry). Fracassado, porque não conseguiu garantir o conforto que queria para os seus, não tem coragem para suicidar-se. Tenta matar sua indefesa filha, mas é impedido pela intervenção de Mama, que dá fim ao malfeitor e passa a cuidar das crianças.
Interessante a simbologia lançada aqui. Com o acidente, os óculos de Victoria haviam se quebrado, sumindo uma das lentes. Antes da tentativa de infanticídio, o pai os retirara, fazendo a menina perder por completo a visão perfeita das coisas. Estabelece-se o afastamento do universo lógico e racional. A pequena retrocede, com sua irmã, a estágios primitivos da existência. Perde o domínio da linguagem. Deixa até de ser bípede. É o que as ilustrações dos créditos iniciais parcialmente nos contam.
Há um salto de cinco anos. Chegamos aos tempos atuais. Jeffrey, irmão gêmeo de Lucas, é mostrado na luta persistente por encontrar as sobrinhas, o que finalmente consegue. É bastante tocante a cena em que o tio reencontra Victoria (agora Megan Charpentier). Primeiro, dá-lhe novos óculos, o que simboliza o retorno ao mundo civilizado. A pequena então confunde o tio com o pai, abraça-o e pela primeira vez, após tanto tempo, deixa-se ser acolhida pelo universo humano.
Nesse ponto, é importante perceber como o filme lida constantemente com duplos. Temos dois gêmeos. Um é sócio de uma empresa que lhe garantia um bom padrão de vida antes da crise de 2008. É alguém que faz exatamente o que o sistema quer. O outro é um desenhista, artista, que mal tem o suficiente para se sustentar. É o marginal, o outsider, o misfit, termo que está na camiseta de sua esposa Annabel (Jessica Chastain) e que significa “desajustado”, “o que não se ajusta a um sistema” (interessante como no decorrer da película as camisetas vão transmitindo pistas para a história). Esse duplo encontra um reflexo nas duas meninas, Victoria, que possui um nome inteiro (e bastante significativo) e Lilly (Isabelle Nélisse), a mais nova, que tem na verdade uma redução de nome. A primeira é vitoriosa, pois consegue voltar ao seio da civilização, enquanto a outra não, pois está fortemente ligada ao primitivo. A primeira se une a Jeff (ambos desenhistas) e depois a Annabel, desligando-se de Mama. A segunda não.
O que significa essa recorrência ao jogo com o duplo? Trata-se da representação da fragmentação do eu, fruto de forças que estão em conflito e, portanto, mal resolvidas. Para entender essa problemática, necessário se faz analisar a figura de Mama, que é projeção de toda essa composição defeituosa.
Tal entidade fantasmagórica apresenta elementos muito reveladores. Sua forma é bastante assustadora, mas, quando se deixa de lado o medo, enxerga-se um lado positivo. Não há, portanto, maldade pura. Ela é quem evitou que as meninas fossem assassinadas, é quem as criou, é quem está o tempo todo com elas, mostrando-se afetiva e até brincalhona. E possui cabelo e vestido esvoaçantes – ela própria o é – que fazem lembrar a Natureza encarnada na nevasca em Sonhos (1990) de Akira Kurosawa. Sua figura, então, acaba representando o princípio da feminilidade, que tem seu ápice na maternidade, função que lhe fora proibida por causa de sua doença mental. Daí sua energia represada canalizar-se no erro, que, conforme dito, foi condenado à repetição, transformando-se em assombração.
 
Fotograma da cena da nevasca em Sonhos (1990), de Kurosawa.

Enfim, Mama estabelece um duplo com Lucas (o DAD na placa do carro). Essas nomeações (dad, mama) são marcas afetivas, o que mostra que ambos mataram por amor. Ele, porque não queria que seus parentes sofressem a derrocada econômica. Ela, porque não queria que ninguém atrapalhasse seu impulso de maternidade. Quando se ganha consciência dessa oposição, Mama se torna um filme de terror estranho, pois se mostra marcado pela sentimentalidade. Seu potencial assustador sai diminuído, mas sua qualidade fílmica acaba enriquecida. O valor dele está na forma como disseca nossa sociedade, ainda que conotativamente.
Guillermo del Toro mostrou-nos um texto bastante crítico das relações humanas, prejudicadas pela obsessão por posse. Não é à toa que a única data associada ao passado de Mama, 1878, ano em que o manicômio em que estivera internada foi fechado, é a mesma da criação da moeda de dólar chamada Morgan. É o padrão mais popular entre os colecionadores, que não deixam de ser indivíduos que misturam amor e posse. Vem à tona o desejo desenfreado de ter, que suplantou outros mais importantes e, assim, provocou a crise de 1929 e 2008. Diante desta última, qual foi a postura adotada por vários governos, que deveriam zelar por nós? Incentivos ao consumo, socorro aos setores financeiro e automobilístico. Fomos estimulados a repetir o erro, a alimentar a assombração. Não houve uma conscientização do povo de que o ter não é mais importante que o ser, de que o essencial não é viver trocando de carro, smartphone, computador. Por que não baixar nosso padrão de consumo e viver melhor com o que ajuizadamente podemos ter, assim como fazem Jeff e Annabel? Não, parece que o mais importante é sermos empurrados para o consumo e endividamento, fazendo girar a ciranda financeira.
Lógico que não assumimos que somos insanamente consumistas. Conhecemos nosso erro, mas o colocamos por debaixo do tapete. Ou para debaixo da cama, simbologia do problema mal resolvido e bem aproveitada em uma das cenas mais assustadoras de Mama. Passamos a praticar o que Renato Russo já havia condenado: “mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira”. E isso nos põe constantemente à beira do abismo, como na cena final do filme.
Entretanto, ao contrário de muitas narrativas de terror, Mama transmite uma mensagem, na verdade um alento de esperança, representada no clímax, em que finalmente os conflitos são resolvidos. Lilly ficar com Mama simboliza por um lado um fracasso, pois as forças primitivas da obsessão por posse venceram. Ela parecia de fato um caso perdido. Não se sentava à mesa, dormia embaixo da cama, não dominava a linguagem. É o recalque que não consegue ser eliminado. Ou não. Deve-se lembrar que o filme lida com a simbologia da metamorfose, que num primeiro momento é negativa e está representada na figura feia da mariposa. Mas o contato da caçula com Jeff e Annabel chegou a ativar uma mudança, não para erguê-la por completo, mas para devolvê-la a Mama (e para tudo o que ela representa de ruim) e sublimá-la. Sua integração ao fantasma e sua transmutação em borboleta, código oposto ao da mariposa, é a ideia de que essa malignidade e o que ela representa podem não ser eliminados, mas canalizados para aspectos positivos. O que vence, então, não é a insanidade da posse de bens materiais ou até mesmo da maternidade que sufoca e impede o crescimento. O que vence é a força das relações humanas sinceras, o amor, a tolerância, a solidariedade, o que de fato nos torna valorosos e especiais.
Especial enfim foi o esforço de Guillermo del Toro, que fez seu filme de terror não enveredar pelo já desgastado caminho da mutilação sádica ou da sexualização banal e complexada. Trilhou pela crítica social sem abandonar o lado humano, o que contribui para engrandecer os produtores e os receptores dessa obra tão valiosa.

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quarta-feira, 1 de maio de 2013

"Meninos e Meninas": O Português Errado


Há um trecho interessante (entre tantos) de “Meninos e Meninas”, do álbum As Quatro Estações (1989), do Legião Urbana: “Eu canto em português errado (...) / Troco as pessoas / Troco os pronomes”. De fato, nessa composição o interlocutor é tratado pela segunda pessoa (“Te fiz comida, velei teu sono / Fui teu amigo, te levei comigo / E me diz (...)”, “Me deixa ver como viver é bom”, “Acho que te amava, agora acho que te odeio” ) e também pela terceira (“Você me deixou sentindo tanto frio”, “Você não quis tentar me ajudar”), o que constitui cruzamento de pessoas. Entretanto, não se trata do que é comumente rotulado de “português errado”.
A língua é um ato humano e como tal está sujeita a variações, todas legítimas. Na verdade, o que se diz português correto, o bom português, o mais apegado às normas gramaticais, é apenas uma entra tantas variedades. A mais prestigiada, é verdade, já que associada à classe alta. Curiosamente, nem esse estrato social sabe usá-la perfeitamente. Constantemente vemos pessoas bem conceituadas cultural e economicamente falarem “a gente” ao invés de “nós”, “vou fazer” ao invés de “farei”, “o livro que gosto” ao invés de “o livro de que gosto” ou até mesmo esquecendo de vez em quando o “s” que marca o plural.  
O mais importante, entretanto, não é se preocupar em corrigir desvios da norma culta, mas ter em mente que a linguagem, como uma manifestação humana (nunca é demais repetir), é uma atividade social e, portanto, apresenta formas de adequação. Assim, em uma entrevista de emprego, por exemplo, é apropriado manter-se o mais próximo do padrão gramatical, evitando marcas de coloquialidade. O que não quer dizer que esse padrão é sempre válido. Basta lembrar uma antiga propaganda que o Ministério da Saúde espalhou em outdoors pelos idos dos anos de 1990: “Se você não se cuidar, a AIDS vai te pegar”. Qualquer “correção” faria a mensagem fracassar, pois não seria tão eficiente na sua comunicação direta com o grande público. Compare e pasme: “Se tu não te cuidares, a AIDS pegar-te-á”; “Se você não se cuidar, a AIDS pegá-lo-á”.
Enfim, se existe um bom português, esse será aquele em que a competência da comunicação se manifesta, atentando-se, portanto, à adequação de contexto. Assim, uma pessoal que usa linguagem formal em conversa de boteco soaria pedante, da mesma maneira que o uso de gírias e coloquialismos soaria desrespeitoso diante de autoridades.


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