Final de ano é uma época de simbologias
interessantes, infelizmente algumas perdidas, outras na verdade não percebidas,
o que no fundo pode dar no mesmo resultado negativo. Não as notamos por causa
do nosso cotidiano, que nos faz viver atualmente uma mistura de esperança,
exaustão e estresse. São as férias avizinhando-se, mas também o cansaço
resultante dos doze meses (trabalhos) de Hércules que enfrentamos. Sem contar a
preocupação com as comemorações e, infelizmente, o frenesi consumista a que nos
entregamos, transformando shopping centers
em verdadeiros formigueiros. Nesse contexto, é bastante válida uma pausa
para captar o que estamos deixando escapar desse momento que ainda carrega algo
valioso e nada materialista.
O vídeo acima permite entender ao que
estamos ficando cegos. Trata-se do “Jauchzet, frohlocket”, abertura do Oratório de Natal de Bach, que estreou
em 25 de dezembro de 1734. Se lembrarmos que essa obra foi apresentada aos
poucos durante seis dias (25, 26, 27 de dezembro de 1734 e 01, 02 e 06 de
janeiro de 1735), notaremos que a noção de tempo e de experiência de vida eram
outras. Assumir um compromisso de diariamente não só executar, mas também
assistir a uma composição sacra é hoje um esforço inimaginável. Mas é esse impensável
que precisamos vislumbrar.
O interessante nessa composição barroca
é que sua melodia nasceu profana. Bach então, quando recebeu o pedido para
produzir um oratório, praticou o que alguns chamam musicalmente de paródia:
aproveitou-se do elemento já existente e o aplicou em novo tema. Enfim, o
secular virou sacro. Atualmente, as comemorações que essa obra representa
voltaram a se tornar seculares. Essa comutação, portanto, facilita a entender o
significado profundo da data que estamos comemorando, sem que caiamos em
sectarismos.
Inicialmente, é bastante válido prestar
atenção na letra:
Jauchzet, frohlocket! auf, preiset die Tage,
Rühmet, was heute der Höchste getan!
Lasset das Zagen, verbannet die Klage,
Stimmet voll Jauchzen und Fröhlichkeit an!
Dienet dem Höchsten mit herrlichen Chören,
Laßt uns den Namen des Herrschers verehren!
A tradução poderia ser algo próximo disto:
Grite
de alegria, alegre-se! Eleve-se, louve este dia,
Glória,
pois que hoje o mais elevado foi feito!
Abandone
a hesitação, afaste a lamentação,
Comece
a cantar com muito júbilo e alegria!
Sirva
o Altíssimo com coros magníficos,
Adoremos
o nome do nosso governante!
Trata-se de uma mensagem para que elementos
negativos como medo, lamentação, hesitação sejam banidos e substituídos pela
alegria (muito mais poderosa e importante) diante do fato de que dias novos
estão surgindo. É também uma mensagem para a busca de elevação, de servir
àquilo que está nas alturas. Entretanto, ela ainda é válida hoje?
Natividade Mística (c. 1500-1501), de Botticelli
Uma obra de 279 anos, de raízes profanas, feita por alguém tão pragmático, teria algo sublime a comunicar em dias tão consumistas? Parece que a
lição que ela nos passa é a de que ainda somos humanos, não importando se o
lastro de nossas manifestações é sacro ou profano. E o final de ano, apesar de
muita coisa parecer provar o contrário, é o momento certo para que esse desejo
de elevação renasça. E, como um mito (e de fato o é!), precisa sempre se
renovar, para que, revivida, a mensagem não se perca.
Mais um ano se acaba, outro está
chegando. E estamos tomando fôlego e prontos para mais desafio. É da essência
humana. E é essa energia que precisa ser celebrada, por isso a necessidade de
nos confraternizarmos, de experimentarmos que o mais valioso, o mais elevado é
justamente estar vivo e compartilhar experiências. Deve-se glorificar o simples
e ao mesmo tempo valioso feito de estarmos aqui, e de não estarmos sozinhos. É
desse pequeno e ao mesmo tempo grandioso ingrediente de que é feita a gloriosa
aventura de nossa existência.
No próximo domingo
será realizada a prova da FUVEST, um dos vestibulares mais importantes do país.
Aquele que vai prestá-la precisa entender que, pelo menos em Português, nos
últimos anos essa avaliação tem-se mostrado sem sustos, artimanhas, mistérios ou
segredos. Sua intenção não é descobrir entre os estudantes potenciais filólogos,
linguistas, gramáticos ou literatos, mas apenas selecionar quem tem competência
linguística adequada para as diversas carreiras do ensino superior, não importa
se de humanas, biológicas ou exatas.
Dessa forma, por
exemplo, as questões de literatura não vão se concentrar em literatices sobre quem
escreveu tal livro ou qual o nome de tal período estético. O que se cobrará é o
reconhecimento dos mecanismos de funcionamento do texto literário. Assim,
pode-se indagar o que a repetição de um evento (consoante, rima, vocábulo,
ação, o que quer que seja) tem a ver com a dinâmica da obra em análise.
Nesse ponto, há algo
que ressaltar. Já que todo texto literário é um produto social, pode-se cobrar
do vestibulando o reconhecimento da relação que um romance ou um poema tem com
o seu momento histórico. Assim, o banditismo de Jão Fera em Til é um
típico sinal de que a região em que ele se encontra, o interior de São Paulo,
ainda não havia se civilizado por completo, abrindo caminho para a utilização
desses recursos violentos para a manutenção de uma certa ordem. Ou então,
as plantações de Luís Galvão (cana e café) indicam processos econômicos a que o
Brasil se havia dedicado. Até mesmo a posição de sua fazenda revela a maneira
como essa região se povoou, concentrada inicialmente em atender a zona aurífera
de Minas Gerais. Entretanto, não só de História se viverá. É possível fazer uma
ponte com Geografia para entender que o tipo de solo que Alencar chama de rico
e ferruginoso é nada mais do que a célebre terra roxa.
Além disso, o
candidato deve estar preparado para questões que exigirão a comparação entre as
nove obras da lista de livros. Assim, deverá captar, por exemplo, que a
presença do comerciante italiano em Til e em O Cortiço revela
flagrantes da composição de nossa população. Ou então que a escravidão
justifica o comportamento cínico de Brás Cubas ou a desvalorização do trabalho
rural como se vê em Jão Fera, de Til, e Jerônimo, de O Cortiço.
Sem falar que deixa suas feridas em Memórias de um Sargento de Milícias
e Sentimento do Mundo. Enfim, serão questões que funcionarão não apenas
como verificação de leitura, mas principalmente de compreensão. Nesse ponto, é
bastante válido reler os posts dO Magriço Cibernético dedicados a
cada um desses livros (21 de janeiro, 24 de março, 29 de abril, 03 de junho, 17 de junho, 24 de junho, 12 de agosto, 16 de agosto, 02 de setembro, 09 de setembro, 26 de setembro, 03 de outubro, 07 de outubro, 17 de outubro e 28 de outubro).
É também importante
lembrar que a FUVEST cobra a compreensão dos mecanismos de funcionamento
de uma obra literária e não simplesmente a reprodução de clichês analíticos.
Assim, por exemplo, em O Cortiço,
obra que todo mundo facilmente associa aos ditames do Naturalismo, pode-se
cobrar características comuns ao Romantismo, como a exuberância da natureza
brasileira ou a sensualidade feminina associada ao ambiente em que a mulher
vive. Ou em Capitães da Areia, há que
se lembrar que, apesar de se tratar de um romance do regionalismo modernista, a
relação entre Pedro Bala e Dora é uma atualização do Romantismo.
Quanto às questões de
interpretação de textos que não fazem parte da lista de obras da FUVEST, o que
inclui os literários e os não-literários, o esquema será basicamente o mesmo: o
candidato será instado a observar e identificar os mecanismos de funcionamento
da linguagem. Assim, será cobrada não só a compreensão do significado de um
texto, mas também a busca, por exemplo, de uma palavra que sintetize as ideias
apresentadas. Ou então, de uma expressão que as repita em outras palavras. Ou ainda
as manifestações dos diferentes níveis de linguagem, principalmente o formal e
o coloquial, assim como a transferência de uma frase de um registro para outro.
Mas o que se tem mostrado mais interessante é que muitas vezes essa prova exige
que o candidato observe um fato apresentado no enunciado para, sem se preocupar
em classificá-lo ou rotulá-lo, localizar uma alternativa em que haja uma frase
como o mesmo mecanismo linguístico.
Quanto à Gramática,
percebe-se que não há mais espaço para filigranas como a cobrança do tipo de
sujeito ou oração, ou a identificação da diferença entre um complemento nominal
e um adjunto adnominal, entre um predicado verbal e um predicado nominal. As
questões têm-se mostrado mais inteligentes, na medida em que mais razoáveis,
pois cobram o que é útil para qualquer profissional, não somente para os
especialistas em língua. Assim, quando aparecem testes sobre regência,
concordância, crase, nota-se que a resposta é obtida sem absurdos conhecimentos
gramatiqueiros, mas com um pouco de raciocínio e intelecção textual. No mesmo
campo estão questões que pedem para que o candidato indique o valor de uma
palavra, principalmente o de um pronome. Alcança a resposta quem compreende o
contexto em que ela está inserida. Ou seja, quem sabe ler.
Enfim, é nesse ponto que a FUVEST se tem consagrado como um excelente exame. É uma prova que apenas verifica quem
tem competência linguística. Essa habilidade será essencial para quem quiser
estudar com eficiência na vida acadêmica. Qualquer que seja a carreira.
No começo deste mês, alguns jornais publicaram
a foto (vista acima) de Paulo Henrique, 9 anos, mergulhando no esgoto do canal
do Arruda, em Recife. O que levou esse menino a fazer algo tão nojento quanto
inacreditável? Os 200 reais mensais que sua mãe recebe como faxineira são
insuficientes para o sustento da família, por isso o garoto tem de entrar
naquela água imunda e fétida para catar latinha para reciclagem. Obtém no
máximo 10 reais por dia. Trata-se, sem dúvida, de um fato chocante, mas que
passou quase despercebido do grande público, afogado em acontecimentos não
menos importantes como o uso de beagles para pesquisa cosmética, a ostentação
vazia e ingênua do rei do camarote, a rebeldia mimada e delinquente de Justin
Bieber, o assassinato cruel e inexplicável do pequeno Joaquim e as primeiras
prisões ainda que tardias dos participantes do escândalo do mensalão.
A mãe de Paulo Henrique confirma ter
preocupação com essa atividade do filho, pois teme que ele pegue alguma doença.
Na verdade, o contágio já se efetivou e está há muito disseminado, mas não só
no garoto. Ele é só a pontinha do iceberg
que flutua nesse esgoto. O resto engloba todos os fatos listados acima, que
curiosa e paradoxalmente, submersos, ajudaram a ocultar o drama social dessa
família. O pequeno é a parte mais visível de um problema, tornado invisível. É
mais um entre tantos incômodos que fazemos de conta que não existem. Enquanto
as prefeituras não “higienizam” essa realidade, nosso olhar seletivo
preocupa-se em fazer de conta que ela não está aí.
Às vezes, certos malucos quebram esse
esquema de apatia, conformismo, comodismo, egoísmo e cegueira. Alguns deles são
os literatos. Em 1973, por exemplo, época do milagre econômico que gerou muito
do que o Brasil é hoje, José Paulo Paes publicava Meia Palavra, no qual se encontra o poema “Seu Metaléxico”:
desenvolvimentir
utopiada
consumidoidos
patriotários
suicidadãos
Páginas e páginas de filosofia,
sociologia e história foram gastas para analisar o Brasil. De maneira
igualmente competente, mas bem mais concisa, Paes dá sua explicação por meio da
fragmentação e recombinação de palavras, produzindo efeitos bastante
chamativos. Ao misturar, por exemplo, “economia” e “miopia”, transmite a ideia
de que as políticas econômicas não enxergam o verdadeiro problema da nação.
Basta lembrar que com a crise de 2008, provocada de certa forma pelo excesso de
consumo nos EUA, a tática usada tanto lá quanto aqui foi justamente criar
linhas de crédito. É como jogar gasolina para apagar incêndio. Não se repensou
todo o nosso sistema de valores, o que nos levaria a concluir que não
precisamos de tanto – podemos ser mais felizes com bem menos. Para que ter
sempre o carro do ano? Para que ter sempre a mais nova versão de smartphone? Para que ter sempre a última
roupa da moda? Por que esse consumo insano e desenfreado tornando-nos “consumidoidos”?
Estamos nos matando para sempre ter, esquecendo o mais vital, que é viver. Somos
“suicidadãos”.
Haveria um ideal nobre sustentando esse
nosso comportamento: nosso consumo faz a economia girar, gerando mais riqueza
para o país. Trata-se, na verdade, de uma “utopiada”, uma utopia que não pode
ser levada a sério. Quem tem coragem de falar para Paulo Henrique sobre essa
pujança econômica do Brasil, a 6ª do mundo? Só um “patriotário” teria essa
disposição. Ou o garoto do esgoto é um dano colateral? Um caso perdido? Então a
política desenvolvimentista brasileira é uma mentira (“desenvolvimentir”), pois
não produz igualdade social. Ou esta seria mais uma utopiada?
Dessa forma, entende-se que a
literatura, por meio do uso estético da linguagem capaz de afetar nosso
aparelho emotivo, muitas vezes serve para acender uma luz em meio à escuridão
alienante, funcionando como instrumento de resistência ao descalabro em que se
encontra a sociedade. Não é essa a sua principal função, mas, quando bem
realizada, faz-nos ter esperança na espécie humana. Mesmo quando a mensagem é
pessimista, é sinal de que nem tudo está perdido.
Nos posts
de 01 de abril de 2012 e 27 de outubro de 2013 falou-se de paródia. Ficou claro
que se trata de um texto que imita outro, alterando seu tom original, o que
provoca efeito humorístico. Esse procedimento, no entanto, não pode ser
confundido com intertextualidade, que é a referência que uma obra outra faz de
outra, muitas vezes incorporando seus elementos. É o que acontece no comercial
acima, do Focus.
Inicialmente, deve-se lembrar que a
propaganda é um texto que tem a função de divulgar um produto. Para tanto,
utiliza-se de inúmeros recursos com a intenção de chamar a atenção do receptor
para a mensagem que está sendo divulgada. Para tanto, na peça acima, a modernidade
do veículo é ressaltada graças à comparação com os avanços vistos em filmes de
ficção científica. Nesse ponto, ocorre a intertextualidade.
Um cinéfilo refinado notaria que a peça
publicitária utiliza uma música com violinos em crescendo, criando um clima
épico. É uma composição praticamente gêmea da que aparece em Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012).
Entretanto, mergulhemos em outras associações mais simples.
A primeira referência que se estabelece
é com a saga Star Wars. A publicidade
abre com uma impactante corrida de veículos, o que nos faz lembrar a cena da pod race, apontada como a única de valor
no Episódio I: A Ameaça Fantasma (1999),
e que na verdade era por sua vez uma intertextualidade com a corrida de bigas
de Ben Hur (1959).
Pouco depois, aparece uma agitada e
lotada avenida aérea. Ocorre agora uma referência à paisagem de Coruscant, a
capital do Império, vista nos episódios I, II (2002), III (2005) e VI (1983) de
Star Wars.
Em seguida, a propaganda mostra o Focus
estacionando automaticamente. Seu design robusto
contrasta com o caráter exótico dos longilíneos veículos que também parqueiam
sozinhos. Estabelece-se uma ligação com Eu,
Robô (2004), em que se depara com a comodidade de locomoção e garagens
automatizadas.
Logo após, vemos uma cidade noturna e
chuvosa, como imensos painéis propagandísticos digitais com a figura de uma
japonesa. Pratica-se aqui uma intertextualidade com Blade Runner (1982), filme que se passa na sombria Los Angeles de
2019.
Por fim, o veículo é visto em
aceleração, emparelhado com outros dois em um cenário dominado pelo neon. Manifesta-se
a associação com a corrida de motos em Tron
– O Legado (2010), filme que parece ter caprichado no visual futurístico
retrô – e só.
Essas referências que a peça
publicitária faz a várias obras cinematográficas de ficção científica consiste,
portanto, como já se falou, no recurso conhecido como intertextualidade. É o
que se manifesta, por exemplo, na canção “Até o Fim” (1978):
O ouvinte com um bom repertório
cultural, ao ouvir o início da composição, imediatamente se lembra da primeira
estrofe do primeiro poema (“Poema de Sete Faces”) do primeiro livro de Carlos
Drummond de Andrade, Alguma Poesia (1930):
Quando nasci, um
anjo torto
desses que vivem na
sombra
disse: Vai, Carlos!
ser gauche na vida.
Em ambos os textos ocorre o nascimento
do enunciador sendo visto de forma simbólica, nele ocorrendo um anjo que
vaticina, que marca o destino daquele que acabava de vir ao mundo.
Carlos Drummond de Andrade
É importante lembrar que a
intertextualidade não constitui plágio. A incorporação de elementos de um texto
em outro não tem relação com esse crime empobrecedor. Na verdade, a graça desse
expediente está em fazer com que o interlocutor perceba as fontes que estão
sendo mencionadas. Além disso, não é um expediente de falta de criatividade, de
penúria intelectual, mas um processo enriquecedor que é fruto da comunicação
entre textos. O que lembra bem o slogan da
propaganda do Focus (“tecnologia do futuro na sua garagem”): é colocar os
ingredientes dos outros no seu texto.
No post de 24 de março de 2013 falou-se de como é importante prestar atenção ao
viés segundo o qual um texto é produzido. Ter consciência do ponto de vista do
enunciador faz com que se entenda o filtro que ele utiliza na expressão de suas
ideias e, assim, perceber suas limitações ou manipulações interpretativas. Em
outros termos, captar bem mais do que ele está declarando. No entanto, é também
interessante detectar quando o autor trabalha esse elemento para fazer com que
a voz enunciadora acabe afirmando mais do que aquilo que está literalmente em
suas palavras. É o que acontece na canção “The Fear” (2008), da britânica Lily
Allen. Nela, melodia, voz e letra assumem coerentemente um ar cândido, quase
infantil, por meio do qual o eu-lírico confessa suas preocupações fúteis: ser
uma bela celebridade endinheirada. É válido ler essa composição:
I want to be rich and I want lots of money
I don't care about clever I don't care about funny
I want loads of clothes and fuckloads of diamonds
I heard people die while they are trying to find them
I'll take my clothes off and it will be shameless
'Cause everyone knows that’s how you get famous
I'll look at the sun and I'll look in the mirror
I'm on the right track yeah I'm on to a winner
I don't know what's right and what´s real anymore
I don't know how I'm meant to feel anymore
When do you think it will all become clear
'Cause I'm being taken over by The Fear
Lifes about film stars and less about mothers
It's all about fast cars and passing each other
But it doesn’t matter cause I'm packing plastic
and that's what makes my life so fucking fantastic
And I am a weapon of massive consumption
and it’s not my fault it’s how I'm programmed to
function
I'll look at the sun and I'll look in the mirror
I'm on the right track yeah I'm on to a winner
I don't know what´s right and what´s real anymore
I don't know how I'm meant to feel anymore
When we think it will all become clear
'Cause I'm being taken over by The Fear
Forget about guns and forget ammunition
'Cause I'm killing them all on my own little mission
Now I'm not a saint but I'm not a sinner
Now everything is cool as long as I'm getting thinner
I don't know what´s right and what´s real anymore
I don't know how I'm meant to feel anymore
When do you think it will all become clear
'Cause I'm being taken over by fear
A letra mostra a sinceridade de frases
de um cinismo indecente: ” “everything is cool as long as I’m getting thinner” (“tudo
está bem desde que eu me torne cada vez mais magra”). Entretanto, a força desse
texto não está no seu aspecto literal, mas no que deixa mal escondido sob o
tapete. Para tanto, basta observar trechos como “It’s not my fault, it’s how
I’m programmed to function” (“Não é culpa minha, é como eu fui programada para
funcionar”), “I am a weapon of massive consuption” (“Eu sou uma arma de
destruição em massa”, em que “consuption” também está ambiguamente ligado a
consumismo, tema subjacente da canção), “cause I’m killing them all on my own
little mission” (“porque eu estou matando todos eles com minha própria pequena
missão”, em que “little” ganha uma força surpreendente para o sentido do
texto).
Lily Allen
Mas o momento em que o aspecto crítico
se mostra mais escancarado é em “I want loads of clothes and fuckloads of
diamonds / I heard people die while they are trying to find them” (“Eu quero um
monte de roupas e uma porrada de diamantes / Eu ouvi dizer que pessoas morrem
enquanto tentam consegui-los”). Nele, há uma aparente desconexão entre os
versos. Aparente. Expõe-se aqui a relação entre a posse de diamantes, e todos
os valores de ostentação de luxo a que essa ação está ligada, e as condições
desumanas e sangrentas em que esse minério é extraído na África. Assim, está e
não está no texto uma crítica ao consumismo. A autora não precisou fazer um
ataque inflamado em terceira pessoa, um recurso mais comum, visto, por exemplo,
na instigante canção “Stupid Girls” (2006), da norte-americana Pink:
Para se ter uma ideia da virulência do
ataque dessa composição, é importante uma rápida leitura de sua letra:
Stupid girls, stupid girls,
stupid girls
Maybe if I act like that, that guy will call me back
Porno paparazzi girl, I don't wanna be a stupid girl
Go to Fred Segal, you'll find
them there
Laughing loud so all the little people stare
Looking for a daddy to pay for the champagne
(Drop a name)
What happened to the dreams of a girl president
She's dancing in the video next to 50 Cent
They travel in packs of two or three
With their itsy bitsy doggies and their teeny-weeny tees
Where, oh where, have the smart people gone?
Oh where, oh where could they be?
Maybe if I act like that, that
guy will call me back
Porno paparazzi girl, I don't wanna be a stupid girl
Maybe if I act like that, flippin' my blonde hair back
Push up my bra like that, I don't wanna be a stupid girl
(Break it down now)
Disease's growing, it's epidemic
I'm scared that there ain't a cure
The world believes it and I'm going crazy
I cannot take any more
I'm so glad that I'll never fit in
That will never be me
Outcasts and girls with ambition
That's what I wanna see
Disasters all around
World despaired
Their only concern
Will they fuck up my hair
Maybe if I act like that, that
guy will call me back
Porno paparazzi girl, I don't wanna be a stupid girl
Maybe if I act like that, flippin' my blonde hair back
Push up my bra like that, I don't wanna be a stupid girl
(Do ya thing, do ya thing, do ya
thing)
(I like this, like this, like this)
Pretty will you fuck me girl, silly as a lucky girl
Pull my head and suck it girl, stupid girl!
Pretty would u fuck me girl, silly as a lucky girl
Pull my head and suck it girl, stupid girl!
Maybe if I act like that,
flippin' my blonde hair back
Push up my bra like that, stupid girl!
Maybe if I act like that, that
guy will call me back
Porno paparazzi girl, I don't wanna be a stupid girl
Maybe if I act like that, flipping my blonde hair back
Push up my bra like that, I don't wanna be a stupid girl
A crítica de Pink é também ácida. Basta
notar a corrosão que é feita não só no título e na abertura da composição, que
ofende o alvo da crítica, mas também no trecho “What happened to the dreams of
a girl president / She's dancing in the video next to 50 Cent” (“O que
aconteceu com os sonhos de uma garota presidente? / Ela está dançando no vídeo
junto a 50 Cents”). Condena-se a estúpida vacuidade a que o gênero feminino é condenado pela sociedade, qualidade ilusoriamente vista como positiva. Trata-se do desmascaramento da ideologia, assunto já comentado no post de 14 de abril de 2013. É certo que ocorre também o uso da primeira pessoa, como no
texto de Allen, mas o importante aqui é notar a diferença entre alguém de fora
atacar, ou seja, a crítica ser feita em terceira pessoa, recurso ao qual nós
estamos acostumados, e a criatividade em se dar voz ao próprio setor a ser
vilipendiado. Seu próprio discurso o condena. Assim, o viés acaba sendo
manipulado para produzir efeitos retóricos surpreendentes. No caso mais
rotineiro, pode-se até pensar que o discurso de Pink seria baseado na inveja, o
que seria mais difícil de apontar no texto de Lily Allen.
Pink
Esse poderoso recurso é sabiamente
explorado em clássicos como Memórias
Póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom
Casmurro (1899), de Machado de Assis. Neles, o Bruxo de Cosme Velho dá a
voz a membros da elite brasileira que, por meio de seu discurso, acaba pondo a
nu o vazio da existência de seus membros, entregues ao tédio, ao autoritarismo
e a um comportamento caprichoso garantido por uma folgada condição econômica.
Assim, Brás Cubas pode explorar a miséria de Dona Plácida ou brincar com as
esperanças da nobre Eugênia. Pode ainda escrever de maneira digressiva, sem respeitar
o ritmo ou à paciência do leitor. E no fim confessar que tudo isso é natural e
até correto. O mesmo ocorre com Bentinho, que, apoiado em uma sociedade
patriarcal, pode sufocar a energia de vida da brilhante Capitu, até fazê-la
perecer moral e fisicamente no exílio, tudo em razão das vontades mimadas de um
adulto que não largou a infância.
Machado de Assis
Enfim, os exemplos acima são bastante
convincentes para que se entenda que o viés é um elemento importante para a
construção e principalmente interpretação de um texto. Prestar atenção ao ponto
de vista do enunciador ajuda a entender o universo consciente e até
inconsciente do ato de enunciação, o que contribui saborosamente para a riqueza
da leitura.
Há muito se falou, e se falou muito, que
texto é feito da ligação entre os elementos que o compõem. Sem isso, não se estabelece
sentido. Mas existe um tipo especial de construção em que o significado só se
faz pelo contato com outro texto, imitando-o e ao mesmo tempo alterando o seu tom
original, o que no fim muitas vezes acaba provocando um efeito de humor.
Trata-se da paródia.
No vídeo acima, observamos um exemplo
desse artefato linguístico. Trata-se da cena inicial de Spaceballs (1987), do célebre diretor cômico Mel Brooks. Acompanhamos
longos e quase intermináveis 1min43s em que uma gigantesca nave espacial entra em
cena, acompanhada de uma música e sonoplastia que reforçam um clima de
titanismo. No começo a imitação é tão boa que nos sentimos confortáveis, pois nos
vemos diante de um gênero ao qual já estamos familiarizados. Os filmes de
ficção científica costumam apresentar essas entradas grandiosas. A associação
imediata que se estabelece é com o início do Episódio IV de Star Wars, Uma Nova Esperança (1977), clássico
dirigido por George Lucas:
Vemos no vídeo acima os mesmo elementos
de Spaceballs: a amplidão do espaço,
a música de tonalidade épica e a entrada grandiosa de uma nave, no caso um destroier
imperial comandado pelo vilão Darth Vader, que está perseguindo a nave
diplomática da Princesa Leia Organa. Trata-se de uma cena que dizem que
imprimiu uma maneira nova de fazer cinema: no lugar dos créditos que vão sendo
mostrados enquanto a história é lentamente apresentada, já se é jogado na
tensão de uma caçada barulhenta. Filmes nunca mais seriam os mesmos a partir de
então...
Entretanto, há ingredientes em Star Wars que o próprio George Lucas
confessou ter buscado em outra fonte, um filme que colocou a ficção científica
em um novo patamar, tirando-a da circunscrição dos filmes B. Trata-se da
obra-prima de Stanley Kubrick, 2001 – Uma
Odisséia no Espaço (1968). Basta
observar o vídeo abaixo e notar a filiação a que o épico de Lucas está filiado:
Vemos os mesmos fatores dos dois vídeos
anteriores: a amplidão do espaço, a entrada magnânima de uma nave e as tomadas
lentas e gigantescas, que deveriam ser muito mais estonteantes durante a
estreia, em 1968. Mas há algo que Spaceballs
não capturou, que é o cerne da ficção científica, que fez muitos críticos
aconselharem trocar o nome desse gênero para “ficção especulativa”. Esse
elemento dissonante é anunciado pela música, que tem um impacto diferente do dos
outros dois filmes. O Adagio do
armênio Aram Khachaturian (1903-1978) impõe à cena não um tom de grandiosidade,
mas de melancolia. Estaria Kubrick mostrando a condição humana como entediante
ou desencantada? Reforçaria essa tese o cotidiano da nave: um astronauta
exercitando-se enquanto cuida do funcionamento do equipamento e de outros
astronautas, que estão em hibernação (vemos suas câmaras na cena em questão).
Faz até lembrar o androide David (interpretado por Michael Fassbender) no
recente Prometeus (2012), dirigido
por Ridley Scott, outro filme que produz um incômodo existencial.
O modelo está então estabelecido: a ficção
científica legítima é um gênero que, por meio de uma narrativa, possibilita a especulação
sobre questões vitais da condição humana. É o que vemos em 2001 – Uma Odisseia no Espaço, em Prometeus e um pouco em Star
Wars. Mas Spaceballs não é uma
cópia fiel desses moldes, por isso seu objetivo não é possibilitar reflexões
sobre a existência. Como paródia, sua intenção é alterar, distorcer – e, a
partir daí, gerar humor. Tal fica escancarado pela frase “We brake for nobody”
(“Não brecamos para ninguém”), vinda do nosso cotidiano e que não condiz com a
realidade de uma viagem interestelar. Mas a comédia já estava garantida pela
extensão praticamente infinita da nave. E,
como já deve ter ficado claro por tudo o que foi discutido neste post, a compreensão desse fenômeno
linguístico só é possível pelo conhecimento do gênero a que está ligado. Assim,
a paródia só funciona intra e intertextualmente.
No
próximo
final de semana ocorre mais uma edição do ENEM, prova que, apesar
dos tropeços
dos últimos
tempos, conseguiu ganhar importância no universo dos vestibulandos. Infelizmente, de um valioso termômetro do nível de ensino do País, transformou-se em um
gigantesco vestibular, além de ferramenta de marketing de inúmeras utilidades. Entretanto,
é
mais útil
discutir o que o examinando precisa ter em mente neste domingo na prova de
Linguagens, Códigos
e suas Tecnologias.
O
ENEM é
uma prova que avalia competências e habilidades (o que não significa que não tenha vez por um outra um
lado conteudista). Assim, o que o candidato precisa demonstrar é sua capacidade de leitura e
interpretação
de diferentes tipos de texto, a matéria-prima da prova. Dessa
forma, é
importante reconhecer e entender diferentes modalidades textuais e captar como
elas funcionam socialmente. Assim,
deve-se entender, por exemplo, que um cartaz apresenta concisão e ligação entre imagem e código verbal em nome da
comunicação
imediata, ou que um editorial apresenta elementos argumentativos, que uma
propaganda tem preocupação em fixar a mensagem na mente no leitor.
Além disso, o candidato deve
saber relacionar diversas espécies de texto, verbais ou imagéticos, buscando não apenas semelhanças, mas também diferenças. Ou então reconhecer neles quais são os objetivos do seu autor e
a que público
se dirige. Num romance de José de Alencar, por exemplo, a descrição idealizada pode servir para
revelar que o escritor ou queria sofisticar o seu leitor, ou tinha em mente que
quem degustava sua obra era preocupado com ostentação de luxo. Por fim, deve-se
também
detectar que estratégias um texto possui para influenciar o seu
receptor. Basta lembrar que é comum propagandas de cerveja sempre
apresentarem gente feliz degustando o produto, dando a entender que se trataria
de um vital elixir da bem-aventurança.
No
fundo, o que o candidato vai ter de captar são os mecanismos de
funcionamento de um texto, perceber que palavras servem para conectar ou
retomar ideias, quais termos têm o dom de resumir ou simbolizar pensamentos ou
conjunto de valores. Assim, é de vital importância saber detectar a função da linguagem predominante -
quando em Memórias Póstumas de Brás Cubas o narrador confessa no
primeiro capítulo
que por um bom tempo hesitou se começava sua biografia pelo
nascimento ou pela morte, ele fez com que a narrativa discorresse sobre ela
mesma, o que configura a função metalinguística. Ou então notar como a linguagem pode
se usada para fazer com que o leitor
preste atenção
à
sua construção,
configurando a função poética, muito bem vista, por
exemplo, no largo emprego de proparoxítonas em "Balada do
Mangue", de Vinicius de Moraes, servindo para representar a situação anormal e canhestra de a
feminilidade ser usada para prostituição. Além disso, o aluno pode ser
instigado a reconhecer a capacidade que os textos têm de preservar nossa
identidade e nosso patrimônio cultural. É o que se vê, por exemplo, no poema
"Não
Sei Dançar",
de Manuel Bandeira, ou no romance Amar,
Verbo Intransitivo, de Mário Andrade, em que se apresenta o corso: em
ambos descreve-se como se festejava o Carnaval em tempos passados, no salão ou no corso.
Quadro de Portinari retratando a zona de prostituição do Mangue no Rio de Janeiro.
Ainda
nesse escopo, quem vai prestar ENEM precisa levar em consideração que a língua é um instrumento social e,
portanto, suscetível a variações ligadas ao contexto em que
é
utilizada. Logo, não existe um padrão único, mas vários, que são os níveis de linguagem, todos legítimos, cabendo apenas
observar em que situações são adequados. Deve-se então aceitar que a publicidade,
entre tantos outros gêneros, utiliza linguagem coloquial para
garantir maior alcance à sua mensagem. O que não significa que o padrão culto perdeu sua utilidade:
há
momentos em que ele é vital, como na documentação científica ou na redação de regulamentos.
Com
relação
ao corpo, não
se deve esquecer que ele é capaz de carregar e transmitir significados,
promovendo a criação de identidade, a integração social e a satisfação de necessidades cotidianas.
Quando se dança,
por exemplo, pode haver uma preocupação em seduzir, divertir, assim
como quando se pratica esporte pode estar-se buscando conhecer pessoas ou mesmo
competir e garantir a primazia dentro de um grupo social.
O
ENEM cobra também a análise da arte em suas múltiplas manifestações, todas legítimas, não importando se é um quadro de Cézanne, um concerto de Bach,
um grafite nos muros de São Paulo ou o funk erotizado e marginal dos
morros do Rio de Janeiro ou de ostentação da periferia de São Paulo. Seguindo essa linha,
é
vital entender que o conceito de beleza, essencial para a manifestação artística, não é universal, pois é um fenômeno cultural e, portanto,
relativo: tanto é bela uma top model como Gisele Bündchen quanto uma miss plus size ou mesmo uma mulher de pescoço de girafa da Tailândia.
Mulher com pescoço de girafa da Tailândia.
Dentro
do campo artístico,
atenção
especial deve ser dada à literatura. É importante perceber que esse
tipo de produção
está
sempre inserido em seu momento e por isso revela características do seu contexto histórico, social e político. Assim, deve-se lembrar,
por exemplo, que o Romantismo, surgido 14 anos após a independência do Brasil, acaba
naturalmente expressando ideais nacionalistas. Ou que o Primeiro Tempo
Modernista, surgido numa época em que a industrialização de São Paulo já estava se mostrando
marcante, acabaria tendo tendências futuristas. Mas é importante notar dentro dos
textos literários
quais concepções
de sua função
ou do processo de construção eles apresentam: um romântico acreditaria que sua
arte é
essencialmente emoção e, se a obra conseguiu tocar o coração do leitor, já cumpriu sua função estética, sem que haja preocupação com a forma, o que é o oposto da visão parnasiana, que põe em primeiro plano o
artesanato da palavra, ou do Realismo, que privilegia a crítica social. Além disso, é necessário lembrar que certos temas
não
se prendem a uma escola literária: a valorização da cultura popular, por
exemplo, pode ser vista no Romantismo e no Modernismo, assim como o
endeusamento da mulher está presente no Trovadorismo, no Classicismo, no
Romantismo e no Modernismo de Vinicius de Moraes.
Por
fim, o candidato precisa estar antenado às novas tecnologias, sabendo
identificá-las,
além
de mostrar-se capaz de entender seu funcionamento e o impacto social que elas
provocam na comunicação e na difusão de conhecimento. De fato, a
internet tem servido para que ideias circulassem de maneira espantosa, não apenas nas redes sociais,
em que pessoas trocam informações, opiniões e conhecimento, mas também por meio de comunicadores
instantâneos
(síncronos)
ou por e-mail e fóruns (assíncronos). Basta lembrar como
as manifestações
de rua do semestre passado foram alimentadas pelo Twitter e Facebook. Ou então como o contato com arte e
entretenimento ganhou novas dimensões, pois a qualquer hora é possível ver um programa de 2013
ou de 1969 pelo Youtube ou Netflix. Livros podem ser lidos em pdf, músicas ouvidas em mp3, o que
faz a produção
intelectual alcançar um nível antes imaginável, ao mesmo tempo em que
questões
como direitos autorais passam a ser repensadas.
Em
suma, a proposta do ENEM, apesar dos tropeços que o arranharam, é muito bem intencionada:
avaliar o aluno dotado de competência linguística, aquela que será, pois, um profissional e um
cidadão
eficiente. Resta então aO
Magriço Cibernético desejar que seus leitores
tenham um excelente desempenho neste final de semana. Boa prova a todos!