quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Herói, Star Wars e O Dia Depois de Amanhã - As Três Máscaras do Cinema: Arte, Ideologia e Indústria Cultural



Chamado de sétima arte e, por isso, o caçula de todas elas, o cinema tem possibilitado inúmeras discussões, algumas delas aqui nO Magriço Cibernético. Sua produção é bastante vasta, apresentando alguns exemplares preciosos, outros esquecíveis. Em vista de tudo isso, seria interessante ter em mente a classificação apresenta pelo estudioso da área, Paulo B. C. Schettino. Claro, deve-se lembrar, antes de mais nada, que toda rotulação é problemática, pois tem um quê de artificial, falhando ao não apresentar nuances entre os diferentes tópicos, desprezando a riqueza que é a interpenetração possibilitar que um mesmo filme apresente características de mais de uma máscara (para usar o termo de Schettino). Na verdade, devemos vislumbrar uma película pele seu caráter predominante, do contrário, o prejuízo será relevante ao se ignorar as manifestações das outras máscaras num mesmo exemplar. Só com isso em mente é que se enxergará melhor a produção cinematográfica.
Num primeiro momento, podemos destacar filmes em que a máscara “Arte” é posta em relevo. Entre tantos, podemos citar dois chineses da nova sofra que andou um tanto na moda: Herói (2002) e O Tigre e o Dragão (2000). São obras que se mostram verdadeiros colírios, verdadeiras pinturas a lembrar os épicos de Akira Kurosawa. Some-se a isso a excelente trilha sonora de Tan Dun, que, no caso do segundo filme, ganhou o Oscar. Injustamente, pois quem merecia era Hans Zimmer com Gladiador (2000). Comprova essa injustiça o fato de que o alemão já tinha ganhado o Globo de Ouro com essa banda sonora. Entretanto, era o ano em que a Academia queria agradar a China e o seu riquíssimo mercado. Business...
O aspecto estético (alguns até acusariam de esteticista) desses dois filmes chineses chega a enobrecer nossa alma. É cinema para ver. Talvez isso seja o ingrediente que nos faça perdoar a ideologia assustadora de Herói, que subliminarmente parece justificar ações como o Massacre da Paz Celestial. Tudo parece válido para manter a China unida. Mas o que vale é ver como uma mesma história pode ser contada de perspectivas diferentes, até mesmo sob matizes diferentes. Usa-se “matizes” tanto conotativa quanto denotativamente, pois chamaram a atenção as diversas cores usadas para cada viés narrativo assumido.
Também desperta interesse nesses filmes as lutas, que viram coreografias que misturam dança e acrobacia. Pode-se imaginar que é o momento em que o filme se rende às outras máscaras, pois saciaria o desejo por pancadaria típico dos famigerados filmes de kung fu de Jackie Chan e genéricos. Atende-se, portanto, à preocupação com lucro e com a veiculação de ideologia? Talvez esse não seja o aspecto mais forte aqui. Ainda predomina a arte. Entretanto, esse ingrediente, negativo, ainda que leve, já reforça a tese de que não se pode imaginar uma divisão radical das máscaras.
Reforça a ideia de que tal tripartição é impossivelmente estanque a lembrança de que os dois filmes em questão também servirem como meio de comunicação. Já se falou da ideologia subliminar de Herói. Pode-se lembrar também que o tema de O Tigre e o Dragão – belo, por sinal – está em outras obras do seu diretor, Ang Lee: Hulk (2003) e Brokeback Mountain (2005). Esses três filmes abordam o conflito problemático do indivíduo massacrado diante das imposições sociais. Em Brokeback Mountain, tolheram a plenitude de uma manifestação de afetividade. Em Hulk, provocaram a explosão animalesca do protagonista. Em O Tigre e o Dragão, foi apresentada a solução do desapego, que torna as personagens mais leves e metaforicamente voadoras. Mas o resultado é o mesmo: a desumanização.


 A segunda máscara, por sua vez, pode ser vista em filmes como as trilogias de Guerra nas Estrelas. Há aqui a utilização do cinema como meio de transmissão de ideias. No caso da trilogia antiga, a saga de ficção científica não chega apenas a criar elementos no imaginário dos seus espectadores. Na verdade, recupera – obedecendo à teoria de Joseph Campbell (O Poder do Mito) – a importância, o valor dos mitos em nossa vida. Transforma-se, portanto, em fábula a explicar, representar e falar sobre o mistério de nossa existência. É a jornada do herói em busca de seu eu interior. Para tanto, basta lembrar a figura de Darth Vader, vilão mascarado, pois de rosto destruído. Representa-se aqui o risco que nós corremos se nos entregarmos ao sistema, à burocratização alienante de nossas vidas – a perda de nosso rosto, de nossa identidade.
Quanto à trilogia nova, destaca-se o Episódio III: A Vingança de Sith (2005), em que se enxerga, na metáfora do conflito entre os jedis e os siths, o choque entre o Budismo e o Capitalismo, ou seja, entre o Oriente e o Ocidente, este, infelizmente, aparentemente vencedor.
Óbvio é perceber que a preocupação com os efeitos visuais seria uma manifestação da máscara “Arte” e o lucro fabuloso dessa saga é a encarnação da máscara “Indústria Cultural”. Mais uma vez reforçada a tese da impossibilidade de enxergá-las como fortemente compartimentadas.


 Por fim, podemos destacar como filme em que a máscara do lucro se sobressai O Dia Depois de Amanhã (2004). Filme bobo, de trama fraca, muitas vezes previsível, aproveitadora de um tema da moda (a preocupação com o aquecimento global) em que o destaque está nos efeitos especiais simulando a revolta do clima destruindo o mundo, principalmente Nova Iorque. São efeitos de tirar o fôlego, mas muitas vezes não passa disso.
Interessante é ver como a indústria cultural se mostra voraz e ardilosa. Um filme produzido pela Fox, de direita, apoiadora de Bush, veicula ideais contra a Era Bush, e quase nada acontece, apenas uma leve grita ali e aqui da equipe governamental norte-americana, que se sentiu traída. Ou melhor, nem tudo ficou ileso – o lucro da distribuidora foi fabuloso.
Enfim, todos esses filmes, de uma forma ou de outra, mais os primeiros do que o último, devem ser valorizados, pois são manifestações de arte, no sentido de, ao nos fazer evadir da vida (a vida em si não nos basta), paradoxalmente enxergá-la melhor e entender quem somos e qual nosso papel no mundo.



domingo, 26 de agosto de 2012

A Invalidez do Purismo na Arte



São comuns os comentários de que uma obra de arte, quando bem realizada, acaba prejudicada ou deturpada quando transposta para outro código. Assim, os filmes da série Harry Potter, por exemplo, são muito ruins quando comparados aos livros que lhes deram origem. Trata-se de uma posição purista que se mostra estrábica, primeiro porque não enxerga que as diferentes plataformas estéticas têm propriedades diferentes (um filme é feito de imagens, um livro é feito de palavras) que apresentam diferentes formas de degustação; segundo, porque não capta a riqueza de possibilidades que o trabalho estético oferece. Basta observar, para se comprovar o que se está defendendo, o vídeo acima, do grupo The Piano Guys (2011). É uma excelente releitura, com pitadas de pop e jazz, do já apaixonante Prelúdio da Suíte para Violoncelo Número 1 (1717-1721) de Bach (1685-1750), que pode ser apreciada em sua versão original no vídeo abaixo, célebre interpretação de Mstislav Rostropovich (1927-2007):


 Note que não houve prejuízo na passagem da obra original, tocada apenas com um violoncelo, para a de oito instrumentos, pois uma não arrancou a beleza da outra. Desmente-se, assim, o ideal de eugenia artística, infelizmente muito comum, ainda mais quando se trata de música erudita, principalmente a barroca. Houve até radicalismos que defendiam que tal só poderia ser apreciada com os instrumentos da época e como era tocada naquele período. Um exemplo desse esforço em trazer à tona a performance do período é a belíssima versão de "O Verão", de As Quatro Estações (1723) de Vivaldi (1678-1741), interpretada a seguir pelo I Musici (1988):


Vale a pena lembrar que o I Musici, especialista em Barroco, foi o responsável pela redescoberta desse estilo na segunda metade do século XX. Além disso, donos da segunda gravação dessa obra de Vivaldi, praticamente impuseram, involuntariamente, a maneira como essa peça passou a ser executada desde então. Não há o que se questionar quanto a esse trabalho de recuperação fiel do estilo de uma época. O que se critica aqui é o fanatismo segundo o qual qualquer alteração começou a ser vista como uma heresia. É por isso que muitos caturros torceram o nariz para versões como as de Nigel Kennedy:


Nigel Kennedy é um violinista com uma excelente formação erudita e que no meio da carreira tendeu para o pop. Tanto que a sua gravação de As Quatro Estações com o English Chamber Orchestra em 1989 vendeu mais de dois milhões de cópias, o que só alimentou as críticas azedas dos dogmáticos, que questionavam a maneira como esse artista se vestia, se penteava, como deixava a barba por fazer, tudo isso refletindo na maneira como tocava um dos ícones sagrados do Barroco. Note como ele quebra o protocolo ao bater o pé ou até mesmo dançar, incorporando a música e desestabilizando a suposta seriedade que seria esperada dos diferentes membros da orquestra. E o mais importante é que ele improvisa várias vezes, o que os puristas consideram uma grande heresia. Não percebem, porém, que a alma da música está preservada: a fúria da instrumentação imita a fúria de uma tempestade de verão. Além disso, esquecem-se de que essa prática que condenam era comum no Barroco. O próprio Vivaldi, talvez mais exibicionista do que Nigel Kennedy, fazia de suas partituras apenas uma base, que deveria ser complementada pela sua performance. O que esses caquéticos não enxergam, portanto, é que os próprios criadores do tão sagrado estilo já praticam a transcodificação. Basta ouvir o Concerto para Quatro Cravos (1730), de Bach:


Trata-se de uma peça que Bach compôs para ser tocada com seus filhos e seus alunos e que acabou se tornando, principalmente a partir do filme Ligações Perigosas (1988), um dos ícones da música antiga, principalmente por causa da exótica sonoridade um tanto agressiva do cravo, o qual tirava suas notas por meio de pequenos ganchinhos que, acionados pelo teclado, triscavam as cordas. É, na verdade, o avô do piano, que, como o nome diz (piano em italiano quer dizer “suave”), produz uma sonoridade mais delicada ao fazer martelinhos baterem nas cordas. Para sentir a diferença, veja a versão dessa composição para piano, aliás, com quatro grandes intérpretes, Evgeni Kissin (de smoking branco), Martha Argerich, Mikhail Pletnev e James Levine (de óculos):


Óbvio: os puristas chegam a abominar essa versão, pois está em um instrumento que não existia à época em que a composição fora elaborada. Entretanto, esse argumento vai por terra quando se levanta um simples fato: essa peça é uma transposição que o Bach fizera de uma obra de Vivaldi, o Concerto para Quatro Violinos (1711), que pode ser vista nesta versão, que conta com um dos melhores violinistas da atualidade, Itzhak Perlman:


Enfim, os exemplos apresentados acima são suficientes para que se entenda a incompetência do purismo estético que desvaloriza uma obra por ser uma adaptação de outra, ainda mais quando esta se dá pela transposição de códigos. Na verdade, como já se disse, ambas as pontas não têm nada a perder. Além disso, a arte é, como toda manifestação humana, um campo livre e que ninguém consegue tolher completamente, nem mesmo a azeda sanha censuradora desses guardiões. Por mais que protestem, por mais que berrem, será em vão. Ainda bem.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

"Sinnerman" e o Valor da Cultura Popular


Uma manifestação bastante valiosa para a construção e compreensão de nossa identidade é a cultura popular, a qual não deve ser confundida com o substrato mercadológico jogado ao povo na forma de um pobre séquito que parece só ter capacidade intelectual para se destacar por meio de onomatopeias, interjeições e grunhidos como tchus, tchas, tchês tchês rerês, ois, ois, ois. Muito longe disso. Está-se falando de um riquíssimo conteúdo que muitas vezes capta elementos que as produções elitizadas não conseguem vislumbrar.
Um bom exemplo desse poder é a música acima, “Sinnerman”, composição criada na virada do século XIX para o XX e que se tornou muito comum em cultos religiosos, como os que pouco Nina Simone frequentou durante a sua infância na igreja metodista. Curiosamente, a época em que essa obra nasceu foi marcada pelo pensamento positivista, que via na Ciência o instrumento de salvação do homem, já que Deus estava morto. Pelo menos era o que afirmava parte da intelectualidade de então. A crença na tecnologia estava representada, por exemplo, na afirmação arrogante proferida quando o Titanic saía, em 1912, do cais: “nem Deus afunda este navio”. A decepção não viria só com o choque contra o iceberg. Viria também dois anos depois com a deflagração da Primeira Guerra Mundial. Nossa civilização começava a sentir a frustração com relação às promessas de salvação por meio do progresso científico. Essa experiência dolorosa se tornaria uma das marcas do século XX.
“Sinnerman” funciona como uma reação a todo esse contexto. Nela se percebe a angústia do homem que perdeu o rumo. Note quantas vezes o verbo run é usado, sugerindo a ideia de que a existência é uma procura incessante e, por isso, angustiante por todo o dia (“all along dem day”). É o correr desenfreado e aparentemente inútil, é o “remexer de argila” (palavras de Cruz e Sousa em “Alma fatigada”), que o ritmo e a instrumentação frenéticos da música parecem sugerir.
O que desesperadamente busca o pecador (sinnerman)? Ele quer que o escondam (hide), o que no contexto também pode ser entendido como uma necessidade de acolhimento, de proteção diante de uma situação periclitante. O problema é que a pedra (rock), o rio (river), o mar (sea) e por fim até o próprio Senhor (Lord) negam essa solicitação. Configura-se aqui uma condição desesperada do eu lírico, muito bem expressa por imagens apocalípticas: o rio e o mar estão sangrando (bleedin’) e fervendo (boilin’). Em uma conjuntura tão crítica, torna-se supreendentemente coerente a resposta cortante e agressiva de Deus ao clamor do homem: “vá para o diabo” (“go to the devil”). É certo que ela pode ser entendida apenas como uma orientação de que o pecador deve, por causa de suas faltas, dirigir-se ao diabo, que o está esperando (“he was waiting”), o que por si já é uma imagem terrível. Mas não há como negar que ela carrega também um peso de ofensa, o que seria inadmissível para o perfil tradicional que se tem do comportamento do Onipotente, costumeiramente solene.
Nesse ponto é possível perceber um caráter belamente complexo dessa composição, que escapa de rotulações cômodas e comodistas. A religiosidade se dá de forma ousada, desafiadora, como se percebe em “Don’t you see me prayin’?” (“Você não está me vendo rezar?”), que assume um tom de cobrança, o qual vai ser reforçado com “Don’t you know I need you?” (“Você não percebe que eu preciso de você?”). É o homem, que se acha poderoso, enfrentando Deus. Essa postura agressiva só pode ter como consequência (ou causa?) a detonação das já referidas imagens apocalípticas.
O que é valioso em “Sinnerman” é que essa composição se baseia numa relação de conflito entre o arrogante homem e o poderoso Senhor, que curiosamente chama seu opositor de “criança” (child), vocativo que mostra não só afetividade, mas também rebaixamento. É um vocábulo que prepara a resposta fulminante do Senhor: “onde você estava quando deveria estar rezando?” (“When were you/ When you oughta been prayin’?”). Faz lembrar a célebre resposta que Deus havia dado ao inconveniente questionamento de Jó. Faz lembrar também a sociedade atual, em que as pessoas são especialistas em cobrar seus direitos, mas maliciosamente esquecidas de cumprir seus deveres.
Enfim, esse embate revela um sincretismo não só entre petulância e humilhação, entre afetividade e agressividade, mas também entre religiosidade e a euforia que a música transmite. Para os partidários da tese de que o sentimento místico só pode ser expresso por meio de posturas solenes como a dos monótonos (nos dois sentidos) cantos gregorianos, o que se manifesta em “Sinnerman” seria um tremendo desrespeito diante do Senhor. Entretanto, deve-se ter em mente que a interpretação dessa música se dá de maneira entusiasmada, palavra em cuja etimologia está “theos”, que em grego significa “deus”. Assim, torna-se natural o fato de a experiência do divino dentro de si ser capaz de gerar essa euforia tão comum aos encantadores cultos religiosos dos negros norte-americanos (berço de "Sinnerman"), que, se por um lado revelam a herança africana dos espíritos que incorporavam em seus médiuns, por outro denunciam a filiação ao ideal cristão do pentecostalismo, isto é, da manifestação do Espírito Santo tomando conta do corpo do fiel.
Portanto, graças a tudo o que foi discutido aqui, pode-se entender que a cultura popular possui ingredientes valiosíssimos que precisam fazer parte do repertório intelectual daquele que se propõe analisar não só textos, mas também a sociedade em que está inserido. Dessa maneira, ela precisa ser respeitada e, acima de tudo, usufruída.

domingo, 19 de agosto de 2012

Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge - Uma leitura


            
No post anterior foi trabalhado o “Elegia 1938”, do livro Sentimento do Mundo (1940), de Carlos Drummond de Andrade. Este poema terminava com a célebre estrofe:
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
Notou-se nesse trecho a inquietação de um eu lírico que reconhece o mal e, pior do que não fazer nada contra ele, render-se, permitindo que se perpetue. É a expressão de uma beleza sangrada, da qual Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012) também foi tocado. 
De certa forma, esse filme é repetição do anterior, Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008), pois desenvolve o tema do herói não compreendido e renegado. Talvez esse seja vício de terceiro volume de trilogia. É um defeito que pode tornar o filme prolixo, com a repetição até mesmo de cenas de episódios anteriores. A sorte é que na película em análise essas recorrências não enfraqueceram a obra, pois foram breves, servindo para não deixar perdido o espectador desmemoriado ou ignorante dos capítulos anteriores.
Mas a repetição não se restringiu a esses aspectos dramatúrgicos. Alcança também o nível temático, provocando mais uma vez mal-estar na parte pensante do público. Esse incômodo fora provocando em 2008 pela figura do Coringa, que se revelou a nossa sombra (no sentido junguiano), a nossa essência maligna, o psicopata que possuímos latente, mas que a todo custo ocultamos. Não é à toa que Joker (o nome original da personagem) quer dizer não só o que brinca, mas a parte oculta e ambígua de um contrato, anulando seu efeito. E o interessante é que rejeitamos esse nosso ingrediente negativo de forma muitas vezes tão violenta (será medo?) e ainda assim ele está lá, vivo, como se se alimentasse disso. Não era o que se via nas cenas em que o vilão era espancado por um e por outro?
Enfim, essa negatividade, inevitável, só não domina a nossa sociedade porque é impedida por algo dentro de nós. Prova disso é que nossa civilização não sucumbiu (ainda) à barbárie. Prova disso é que no filme de 2008 a decisão de não explodir os navios viria de um presidiário, sinal de que até um bandido tem essa trava de segurança ativada. Tal torna a nossa realidade complexa, bem diferente da visão de outras versões saudosas e maniqueístas de Batman, em que o mal era caricaturescamente sempre o mal e o mocinho tinha sempre um comportamento de mocinho.
No entanto, a realidade nos empurra para questões muito complicadas e tensas: como separar o bem do mal? Vemos um Batman que, cansado do sistema, não se preocupa em prender um bandido (sabe que será solto logo depois), mas em quebrar-lhe as pernas. Vemos um homem bom, Harvey Dent, tornar-se vilão ao lutar por justiça. Vemos o herói assumir a culpa por um crime para que o bem triunfe – o bem precisa do mal, da mentira? Mas esses são temas do capítulo II da trilogia, válidos para o III, ainda assim, devemos nos concentrar no que foi apresentado agora em 2012.
Notamos que em Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge o mal não é apenas psicológico. É uma doença social. A lama, a sujeira está por toda parte. É a tal corrente mencionada pelo Comissário Gordon. Mas não a vemos. Ou não queremos vê-la. Daí o dito da Mulher Gato, dirigindo-se ao milionário Bruce Wayne: “[vocês] vão se perguntar como acharam que poderiam viver com tanto e deixar tão pouco para o resto de nós?”. “A injusta distribuição”, denunciada por Drummond em “Elegia 1938”, mas que acaba sendo aceita. E aí está a causa dos males da doença de nosso tempo. Ou a consequência?
Há um eco de Rousseau aqui: desde o momento em que um homem começou a ter só para si a provisão que seria suficiente para dois, a sociedade começou a fracassar. “A injusta distribuição”. “Como acharam que poderiam viver com tanto e deixar tão pouco para o resto de nós?”. Expôs-se a ferida. Mas, apesar dessa consciência, praticamente nada de eficaz foi feito. O fato é que essa doença está apaticamente em toda parte. E somos todos culpados por ela. Qual a saída?  Alienar-se, como os “Inocentes do Leblon”, outro poema de Sentimento do Mundo? Mas essa solução é inútil, pois não impede a chegada da tempestade social (se é que já não estamos nela). Recomeçar tudo do zero, como tanto quer a Mulher Gato? Mas esse caminho também não é eficiente, pois tem alcance individualista. Ou adotar a postura de Bane, com um gosto anarquista à John Zerzan, que consiste na destruição da atual sociedade?
A exposição dessa situação de ausência de saída torna o filme bastante valioso. Mas há outros aspectos relevantes, como a constante referência a subterrâneos e a necessidade de ascensão. Toda uma camada desprezada da sociedade de Gotham City vai viver nos esgotos, onde encontra melhores oportunidades de vida, formando um exército perigosíssimo. Não é uma metáfora do que atualmente está acontecendo? Essa imagem tem um ar novo, pois substitui a velha alegoria hollywoodiana de extraterrestres destruindo a sagrada civilização. O inimigo não é mais externo. Está aqui mesmo. No nosso subsolo. E é cria nossa.
O problema é que os grandes mentores do novo caos em que Gotham City se vê mergulhada são externos, são do antigo mundo dominado por déspotas, o que faz lembrar o temido oriente dominado por fundamentalistas não-cristãos. E é nesse ponto que o filme mostra um fio desencapado que pode atentar contra a lógica da trama. Se a dor dos vilões (na verdade outras vítimas) foi provocada pelos desmandos do déspota de um país distante, porque dinamitar Manhatann, ou melhor, Gotham? A relação não ficou clara. Ou então é tão subterrânea que não é captada. Além disso, fica no ar a impressão de que Bane é uma evolução de Bin Laden, já que seu ataque também é vindo do oriente e perpetrado utilizando-se de elementos e até mesmo das instituições do ocidente. Mais desconfiança com relação aos "outros", que não pertencem à nossa civilização?
Outro ponto negativo do filme é a solução comercial que é dada à trama (é preciso vender, é preciso ter bilheteria, é preciso cumprir esses gestos universais que alimentam o sistema, como já dizia Drummond em “Elegia 1938”), mas essa é uma discussão à qual O Magriço Cibernético se furta para evitar spoiler.
Ainda assim, são defeitos que não destroem por completo a qualidade de Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge, pois não impedem que se vislumbre a problemática social arrolada acima. Não impede também que se capte a mensagem insistente do mordomo Alfred: a saída está no conhecimento compartilhado, na evolução moral do homem (daí o marcante coro que se ouve ao fundo no trailer, que significa "Suba!"), e não em soluções mirabolantes (ser Batman custaria hoje 1,4 bilhão de dólares) baseada em heroísmos adolescentes. Ou que se capte também a mensagem já presente no filme de 2008: o que mantém nossa civilização em pé é, apesar de tudo, a esperança e a confiança. De poucos, mas que são suficientes para tornar digna a espécie humana.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

As inquietações de Drummond em "Sentimento do Mundo"

No post anterior foi discutido que a comemoração dos 110 anos do nascimento de Carlos Drummond de Andrade gerou um conjunto de afirmações desfocadas que atentaram contra a grandiosidade do maior poeta da literatura brasileira. Aproveitou-se então para observar que a leitura de Sentimento do Mundo (1940), obra cobrada pelos vestibulares da FUVEST e UNICAMP 2013, seria suficiente para se perceber a devida importância desse autor na literatura brasileira. Destacou-se ainda que é um livro em que o poeta abandona a postura iconoclasta típica da fase heroica do Modernismo para, mais maduro, revisar certas posturas individualistas e se abrir ao mundo em que está inserido, o que é indicado no próprio título da obra.
No presente post, vai-se enfatizar uma característica vital da obra em questão, que é a expressão das constantes inquietações de Drummond diante do mundo em que se encontra, marcado pela Ditadura Vargas, Segunda Guerra Mundial, avanço dos regimes fascistas. O poema “Elegia 1938”, recitado acima por Caetano Veloso, possibilita um vislumbre de toda essa problemática.
O primeiro ponto a ser considerado é o título. Deve-se lembrar que elegia é um canto fúnebre, triste. Anuncia-se então que o poema será a verbalização da tristeza pelo crítico momento histórico em que está o eu lírico, muito bem descrito no corpo do poema. E o interessante é que o uso da segunda pessoa (“trabalhas”, “praticas”, “amas”) acaba se confundindo com a primeira pessoa do singular, o que no fundo significa que se está lidando com uma primeira pessoa do plural. O desencanto tem, portanto, certa carga universal.
A primeira estrofe apresenta expressões como “nenhum exemplo”, “sem alegria”, o que serve para caracterizar o estilo de vida vazio apegado apenas ao cumprimento automático de tarefas cotidianas, sem aquele algo a mais que dá sentido à existência. Já o termo “caduco” piora a descrição, pois indica um universo de valores antiquados, de fracassadas utopias que não funcionam mais, mas que se perpetuam.
Nesse contexto de nulidade, o heroísmo, que deveria servir para dar ênfase à nossa existência, acaba também se esvaziando. É por causa disso que a segunda estrofe fala em estátuas que enchem as praças e que depois se recolhem para as bibliotecas. São símbolos de valores cívicos que não inspiram mais ninguém. Sintomático é pensar que inspirar é a absorção de algo. Então nada mais nos preenche. Mais uma vez a ideia do vazio.
Diante desse quadro, restaria, conforme se vê na terceira estrofe, a possibilidade do aniquilamento, não o da morte, mas o da entrega à noite, ao sono vizinho da alienação. Seria uma forma de sossegar as incômodas inquietações. Entretanto, a necessidade de trabalhar, de despertar para mais um dia de rotinas extenuantes e inúteis, mostra a força da “Grande Máquina”, do famigerado “Sistema”, que maldosamente se nutre de nossas energias, dando pouco em troca. Ou só a ração para continuarmos nutrindo esse Todo Poderoso.
Massacrado, só resta ao “bicho da terra tão pequeno” (dizeres de Camões) conviver com seus semelhantes, igualmente mortos existencialmente, a falar de novas utopias, mas sem amor. Outra saída é a entrega à poesia espiritualista, tão em moda no decênio de 1930. Entretanto, igualmente encarada ceticamente pelo poeta nessa quarta estância.
A última estrofe magistralmente fecha o poema apresentando a amargura do eu poemático em reconhecer o fracasso de seus sonhos, que se veem obrigados a serem adiados, e a incapacidade de mudar o mundo, reconhecida pela impossibilidade de dinamitar a ilha de Manhatann, símbolo do poder econômico que coloca a “Grande Máquina” em funcionamento.
É importante ressaltar que o desejo de dinamitar o templo do capitalismo não significa necessariamente que Drummond esteja assumindo posturas socialistas. Afirmar isso seria uma extrapolação de interpretação. Sabe-se que esse poeta chegou a demonstrar simpatia por esses ideais, aproximando-se do partido comunista, mas se afastou dele quando sentiu que estava se mostrando como mais uma forma de autoritarismo. O que o poeta parece expressar aqui é uma rejeição à forma da exploração do homem pelo homem, sonhando, pois, com uma sociedade igualitária, sem a “injusta distribuição”.
Enfim, “Elegia 1938” é um importante poema porque permite que se compreenda em Sentimento do Mundo as inquietudes do seu autor, consciente dos defeitos do seu hábitat, consciente também do que seria necessário para saná-lo, mas (o que é pior) mais consciente ainda da impossibilidade de efetuar esse resgate, tudo por causa principalmente da apatia em que todos, inclusive o próprio poeta, estão mergulhados. Daí a sua angústia ou até mesmo seu discreto ou calado desespero, pois, além de vítima, ele também é responsável pelo desmanche existencial de 1938. E que ainda se faz presente.

domingo, 12 de agosto de 2012

Drummond e o "Sentimento do Mundo"


Estamos celebrando os 110 anos do nascimento de Carlos Drummond de Andrade, fato bastante lembrado na imprensa, ainda mais por causa da FLIP 2012, que teve esse escritor como homenageado. Entretanto, há quem critique a mania de nossa sociedade de se empolgar com datas comemorativas, ainda mais as redondas (10, 20, 50, 100, 200 anos), depois acabar jogando-as no limbo do esquecimento.
Existem aqueles, entretanto, que veem um lado positivo no presente caso: está-se lembrando do maior poeta da literatura brasileira. Não há como questionar essa dádiva. Todavia, a maneira como tal tem sido feito levanta alguns questionamentos. Numa edição do Jornal das 18h da Globonews, Geneton Moraes Neto, autor de uma interessante biografia sobre Drummond, preocupou-se em ler alguns poemas que achava bonitos. Era algo inédito, pois nos fazia ter contato, em um telejornal, com poesia. Mas ficou só nisso, jogado, acompanhado de comentários vagos da âncora Leilane Neubarth – “Muito bom!”, “Muito lindo!” (será que ela realmente havia entendido a força daqueles textos?). Diferente, por exemplo, de quando Tom Jobim recitou “Poema da Necessidade” no programa Antônio Brasileiro (1987), da Rede Globo, e acabou se encantando com o verso “É preciso ter mãos pálidas”.
Há quem destaque, porém, que a poesia é simplesmente o trabalho com a linguagem, devendo ser apreciada sem ênfases, sem pausas, sem interrupções, sem explicações. Assim, a simples leitura de um texto poemático é válida, não interessando ter havido ou não a sua compreensão. O próprio Drummond já afirmara algo parecido no seu “Procura da Poesia”, de Rosa da Povo (1945):
“Penetra surdamente no reino das palavras.
(...)
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?”
Mas naqueles espremidos dez minutos de telejornal destinado ao público em geral, sem espaço para a contemplação, será que o efeito foi válido, ainda mais por se tratar de poesia moderna, que tem um lado tão pouco acessível.
Serviço pior fez Diogo Mainardi no Manhattan Connection, da mesma emissora. Instado pelo jornalista Lucas Mendes a falar sobre Drummond, o assunto do momento, disparou seus costumeiros comentários ácidos, atribuindo ao poeta um sentimentalismo barato e piegas de socialista. Ficou a impressão de que ele não lera (ler mesmo) o poeta mineiro. Ou se esquecera de suas aulas de literatura, que com certeza devem fazer parte do repertório cultural de um jornalista de porte. Drummond tem de fato poemas deploráveis, como os de Amar se Aprende Amando. Mas são textos esquecíveis diante de obras-primas como as presentes em Alguma Poesia (1930), Sentimento do Mundo (1940), Rosa do Povo e Claro Enigma (1951). São textos que deixam claro que não existe sentimentalismo na obra do itabirano e que, quando ela se abre para o socialismo, não o faz de maneira panfletária ou quixotesca. Tanto que em “Mãos Dadas”, de Sentimento do Mundo, o autor deixa claro que não cantará “o mundo futuro”, ou seja, que não se prenderá às utopias desvairadas que hoje caíram em descrédito.
Enfim, são problemas que seriam evitados com a simples leitura das obras de Drummond. E a oportunidade pode ser agora, pois Sentimento do Mundo está na lista de livros para o vestibular da FUVEST-UNICAMP 2013. Trata-se de uma obra que está em um ponto crucial na carreira do grande poeta brasileiro. É o momento em que ele começa a largar sua postura individualista (o famoso “eu > mundo”), autocentrada, típica dos primeiros livros, Alguma Poesia e Brejo das Almas (1934). Basta lembrar o famoso “No Meio do Caminho”: o poeta se mostra tão fechado em si mesmo, como dizia o estudioso Afonso Romano de Sant’Anna, que não é à toa que só olha para baixo, para a pedra, por exemplo. Em Sentimento do Mundo, como o próprio título indica, há o abandono da tendência egocêntrica e a preocupação em prestar atenção no mundo e nos seus problemas.
Sua abertura para o social, entretanto, não se faz de maneira panfletária ou quixotesca. É importante repetir isso. É realizada de forma sóbria e madura, sem deixar de ser bela e tocante. Claro, para o leitor que tem o aparelho estético adequadamente desenvolvido. Do contrário, achará bestas poemas como “Inocentes do Leblon”, recitado acima por Chico Buarque. Nele, de maneira econômica e precisa, sem deixar de lado a literariedade, Drummond critica um comportamento que ainda se faz bastante atual: a inocência (na verdade alienação) das classes favorecidas em se entregarem ao ócio e ao prazer (na verdade à futilidade), ignorando os problemas graves do meio em que estão inseridas. Não é o que se vê hoje? O mundo inteiro acontece com sua crise, não só econômica, mas também ética, e os “inocentes” apenas se mostram preocupados com a areia, o óleo suave, a balada, a micareta. E quando se tem em mente que este não é o texto mais valoroso de Sentimento do Mundo, percebe-se a necessidade de mergulhar na obra. Façamo-lo!

domingo, 5 de agosto de 2012

"Construção", de Chico Buarque - o diálogo entre forma e conteúdo em um texto literário


A análise de “Construção” (1971), de Chico Buarque, é um bom expediente para se saber o que torna literário um texto. Assim, um primeiro passo na busca desse entendimento é observar o título, ingrediente importante, capaz de transmitir pistas para a análise de uma obra. Inicialmente, a palavra construção é uma referência ao protagonista, operário da construção civil, o qual tem sua rotina quebrada por um acidente de trabalho. Acontecimento corriqueiro, entretanto, na época em que a música foi produzida.
No entanto, o que foi arrolado acima não é capaz de caracterizar um texto literário. Basta lembrar que a narrativa presente na letra de Chico Buarque contém elementos que também se encontram em vários relatos jornalísticos, o que a faz, no máximo, um documento sociológico. Então, onde está a sua literariedade?
Curiosamente é ainda o título da composição que dá pistas para a solução desse enigma. O importante em um texto literário, de fato, é a sua construção. Não devemos prestar atenção apenas ao seu conteúdo, mas também à forma como ele está sendo passado. Em outras palavras, sua confecção está ligada ao seu sentido.
Para entender o que se está afirmando, basta notar que “Construção” apresenta uma sequência de orações em que a variação é mínima. Assemelha-se à atividade do protagonista, que vai colocando tijolos lado a lado. Mas é também importante observar que essa estrutura acaba dando um ritmo repetitivo aos versos, o que mimetiza o cotidiano enfadonho da personagem. Sinal disso é verso 5, em que se compara o operário a uma máquina, desumanizando-o.
Entretanto, o que se apresentou até agora faz da letra um puro mimetismo mecânico, transformando-a apenas em um documento social. Há outros elementos a se observar para que se revele a genialidade dessa composição. É importante observar que todos os  versos têm no seu final palavras proparoxítonas, também chamadas esdrúxulas, pois são vocábulos tradicionalmente associados a um caráter exótico, estranho. Daí a poesia convencional proibir a sua utilização, ainda mais em uma posição de destaque como a rima. O emprego delas, e de forma tão intensa, só nos indica que se está lidando com algo esquisito, anormal. Mas o quê?
O verso 6 apresenta pistas cruciais para a interpretação da canção. Quando se afirma que o operário “ergueu no patamar quatro paredes sólidas”, insinua-se a ideia de cerceamento. Está-se, pois, diante de uma situação-limite. A partir de então, algo de muito interessante ocorre: a quebra da construção original. Tanto que no verso seguinte não se usa mais a linguagem lógica, convencional.  Manifesta-se então a explosão da conotação, que compromete a racionalidade da frase: como um operário pode usar magia em seu desenho? Abre-se espaço para que a linguagem figurada instaure outros sentidos, outras realidades.
De fato, na primeira parte da composição ocorre a abolição do real em que o protagonista está inserido, muito bem sintetizado no verso 8, em que se tem a imagem do cimento e lágrima embotando a visão do protagonista (deve-se lembrar que uma construção se faz misturando cimento a líquido). Há, portanto, uma intercomunicação entre o mundo exterior e o mundo interior da personagem, indicando o caráter doloroso do seu trabalho. E é nesse ponto sofrido que ocorre uma pausa, instauradora da desconexão do cotidiano. Não é à toa que a partir de então se intensificam as ousadias da linguagem conotativa: na vida do operário entram termos como “príncipe”, “naufrágio”, “dança”, “gargalhada”, “música”. Inicia-se um afastamento do cotidiano que não tem retorno. A única saída para essa situação crítica de estar entre “quatro paredes sólidas” é a morte, apresentada por meio de imagens belas: o tropeço no céu, que faz o operário flutuar no ar como um pássaro. Apesar do descaso que recebe: agonizou no meio do passeio público, atrapalhando a vidinha das outras pessoas. Note o belíssimo desfecho desse bloco, em que o som de algo impedindo uma fluência está na repetição de /tra/: “morreu na contramão atrapalhando o tráfego”.
A partir desse ponto, de liberação, ocorre também uma libertação sintática das orações, que começam a mostrar uma desarticulação do sentido original do primeiro bloco por meio da nova construção (quantas vezes essa palavra e seus sinônimos aparecem neste post?) dos versos. Parece haver aqui a indicação da necessidade de estabelecimento de uma nova realidade, tornada possível, pois que se baseia na recombinação de elementos já existentes no primeiro bloco.
A terceira parte é mais valiosa. Nela, o caráter caótico das notas musicais, mais agitadas e mais desencontradas, tem a ver com a lógica que é mais severamente arrebentada por meio de novas combinações, mais absurdas. Amor de máquina? Paredes flácidas? Beijo lógico? Flutuação de príncipe? Pacote bêbado?
Não se deve entender, entretanto, que o estabelecimento que aqui se faz de um outro mundo, desconectado radicalmente da lógica convencional, é uma fuga alienante, como faziam os parnasianos em suas descrições de vasos gregos. Na verdade, muitas vezes quando se dá a construção de outra realidade, totalmente absurda, o que se está fazendo é a crítica do sentido do nosso cotidiano. Esse mesmo fenômeno pode ser visto na novela de Dias Gomes, Saramandaia, de 1976. Se duas obras da mesma época revelam o mesmo desvio, então é vital ver o contexto em que foram concebidas.
A década de 1970 foi marcada pelo regime militar, com repressão que muitas vezes se manifestou na censura aos ideais artísticos. É também a era do milagre econômico, em que imperou o ideal de crescimento a qualquer custo. Esses dois pontos foram instituídos como a norma que não podia ser contestada. Daí o slogan “Brasil: ame-o ou deixei-o”. Nesse contexto, a quebra da lógica, tanto em “Construção” quanto em Saramandaia, traz um questionamento ao que estava sendo colocado como padrão para a sociedade brasileira, que no fundo não passava de mera construção e que, portanto, não poderia ser submissamente aceita como correta. A quebra da lógica faz, portanto, com que se enxergue a esquisitice do que foi constituído como normalidade.
Enfim, com base em tudo o que foi exposto, pode-se entender que o caráter de um texto literário está na transmissão de uma ideia por meio do perfeito casamento entre forma e conteúdo. O que torna “Construção” uma das mais preciosas joias da cultura brasileira.