domingo, 15 de julho de 2012

A Criança-Homem e a Ecologia

Dizem que a arte imita a vida. Outros, que a vida imita a arte. Qual dos dois postulados é o correto? Melhor deixar esse embate de lado e ver que muitas vezes de forma simbólica a arte que menos quer se aproximar da vida, que menos quer mimetizá-la, é a que melhor a representa. É a que tem coragem em tocar em pontos que a razão não vê. Ou tem preguiça de ver. Ou não tem coragem.
O vídeo acima, comecinho do filme Sonhos (1990), de Akira Kurosawa, é um exemplo do que se está afirmando. Faz-nos desconfiar da razão do fracasso que tem ocorrido no que se refere a questões ecológicas. E há vários exemplos: Protocolo de Kyoto, Rio +20, Novo Código Florestal, Belmonte... Um lado se queixa da derrocada de ideais verdes. O outro comemora o estabelecimento de propostas factíveis. Uns parecem querer que voltemos às cavernas. Outros parecem contentes com o status quo, pois o poder financeiro não foi incomodado.
Para piorar a situação, espalham-se notícias que tiram a questão do foco. O anúncio sobre os efeitos do aquecimento global foi exagerado. Automaticamente já se acha que tudo está bem, que nada mais precisa ser feito. Continuaremos a poluir a atmosfera com a queima de antiquados combustíveis fósseis. Contanto que não usemos mais sacolinhas plásticas ou que não tomemos mais banho todos os dias e já estaremos contribuindo para o equilíbrio do planeta. E insistimos em deslocar pedaços de metal com um único passageiro – queimando combustível fóssil. E nos preocupamos se um shopping em Higienópolis tem o número adequado de vagas em seu estacionamento – queimando combustível fóssil – e simultaneamente somos contra o metrô no mesmo bairro – que possibilitaria menor queima de combustível fóssil...
O que parece dominar a curiosa espécie humana é a inércia somada de irresponsabilidade. Somos a criança do filme de Kurosawa. Estamos encantados com nossa capacidade de homo faber, fascinados pelas nossas engenhocas. Estamos seduzidos pelo nosso brinquedinho chamado Ciência. Compramos o mito do episódio do Gigante Adamastor, de Os Lusíadas (1572), de Camões, segundo o qual o papel do homem é dominar a natureza, impedir que esta lhe seja obstáculo. Vemo-lo novamente no Fausto (1808), em que o protagonista se dedica à sanha de construir, de fazer, de alterar o ambiente. É o início do mal contemporâneo, bem descrito por Zygmunt Bauman no seu Modernidade Líquida (2000): ação desenfreada sem se saber para o quê. É o mal já profetizado por Eça de Queirós em A Cidade e as Serras (1901), em que vemos o Jacinto sempre modernizando seu palacete do 202 na ânsia de que a Ciência e a Técnica dominassem os elementos e parassem de falhar.
 Entretanto, não percebemos que nossas intervenções na natureza são toscas. Para se clonar uma ovelha, quantos erros e aberrações acabaram sendo produzidos? Não conseguimos sequer reverter os danos da poluição que provocamos. Não temos uma política efetiva de utilização racionável e reciclável de nossos resíduos. E ainda achamos, em nosso egocentrismo, que nossas ações destruirão a natureza e não percebemos que ela pode até ser alterada, mas sobreviverá. Ao passo que nós...
Eis a tão avançada espécie humana. Na verdade, somos desastrados, atroados, espalhafatosos. Enfim, somos o que o belíssimo Sonhos nos mostra: uma criança que inadvertida e teimosamente mergulha nos segredos da natureza, segredos que ela não pode ver. É sonhar que um dia amadureçamos. Mas haverá tempo para isso?

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Mais Mito da Redenção: O Senhor dos Anéis e Homem de Ferro

No post passado, utilizou-se uma cena crucial em Star Wars IV – O Império Contra-Ataca (1980) para mostrar que nela se manifestava mitologicamente a ideia de que no eterno combate entre o bem e o mal muitas vezes essas duas categorias não são tão antagônicas. Não o são porque estão dentro de nós, são partes de nós mesmos. Não é à toa que o vilão da cena é pai do mocinho. Diante da revelação bombástica, que leva o protagonista a uma crise, ele se vê obrigado a mergulhar no abismo de Cloud City. É uma mensagem de que essa recolha interior é um passo vital para nosso desenvolvimento, o que de fato ocorrerá no episódio seguinte da saga, O Retorno de Jedi (1983).
Como exercício, ficou para o leitor dO Magriço Cibernético a análise do vídeo acima, edição feita de dois episódios da trilogia O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel (2001) e As Duas Torres (2002). Nele, vê-se o embate entre o mago Gandalf e o demônio Balrog, entidade que remonta a tempos perdidos. É interessante notar que se trata de um confronto inevitável, apesar de há muito temido pelo mago. É também valioso perceber que se passa dentro de uma montanha, símbolo comumente associado às profundezas do ser. Além disso, os anões haviam cavado muito além do aconselhável, o que liberou aquela malignidade – há conotações morais nesse ponto. Vale também observar como a força desse monstro está ligada ao fogo, habilidade que Gandalf domina. De fato, o fogo tem uma vasta simbologia, sendo ao mesmo tempo elemento purificador e destruidor, ao mesmo tempo o ingrediente que leva evolução ao homem (basta lembrar o mito de Prometeu), mas pode também ser a sua condenação (basta lembrar o mito do Inferno). Por fim, a ponte pela qual A Sociedade do Anel tem de passar, Khazad Dum, é mais resistente do que aparenta. Transforma-se, portanto, no perfeito símbolo da travessia, representação máxima e elevada da vida. O lado lógico diz que a existência é absurda, impossível, inútil, perigosa (“Viver é muito perigoso”, já dizia Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas (1956)), mas, se for levada com sabedoria e coragem, torna-se algo factível.
A mensagem que fica desse episódio é a de que precisamos enfrentar nossos piores medos e obstáculos. Sairemos feridos até, mas, nunca é demais repetir, desse sofrimento se conseguirá o engrandecimento como indivíduo. Trata-se, no fundo, do mito do herói em sua jornada interior de amadurecimento e fortalecimento. É o mesmo processo que se vê no vídeo a seguir, de Homem de Ferro (2008):
No vídeo acima percebemos o resultado de tudo o que se passou com Tony Stark, um playboy de enorme talento e inteligência, mas, frise-se, um playboy. Seu caráter encontra eco em muitos jovens de hoje, que vivem uma era de hedonismo inconsequente exacerbado. Com certeza muitos deles, alienadamente, se tivessem o dinheiro do protagonista, teriam o mesmo estilo de vida: festas, carrões, mulheres. Entretanto, a história do ricaço muda quando se vê preso a uma caverna no Afeganistão. Como o bíblico Jonas no estômago do peixe, esse mergulho serve para o amadurecimento em busca de um emprego mais útil de suas habilidades. Sua saída da caverna, que também possui algo de platônico, é uma caminhada para a luz da razão, da procura altruísta pelo bem-estar alheio.
Enfim, três filmes de estrondoso sucesso (Star Wars, O Senhor dos Anéis e Homem de Ferro) mostram de maneira convincente que o mergulho no precipício, nas profundezas das cavernas, nada mais é do que um passo doloroso, mas valoroso para o engrandecimento como pessoa. Não se entende por que a nossa sociedade tem medo da dor, do sofrimento que vem para a melhora de nosso caráter.

domingo, 8 de julho de 2012

Star Wars e O Senhor dos Anéis: Mito de Redenção

Há alguns meses O Magriço Cibernético referiu-se à presença constante de mitos, ou seja, narrativas que, de maneira simbólica, metafórica, alegórica, acabam nos passando um ensinamento, em geral ligado à nossa existência. Sua estrutura, portanto, é alógica, não podendo ser entendida literalmente. Hoje vamos trabalhar, portanto, com dois exemplos famosos desse fenômeno. 
Como exercício, o primeiro vídeo a ser analisado é uma cena de Star Wars – Episódio V – O Império Contra-Ataca (1980). Vemos nele o tão esperado embate entre o mocinho Luke Skywalker e o vilão Darth Vader em um inóspito local de maquinário, ferro e vento de Bespin. É bastante sintomático nesse conflito o fato de a força do mal estar de preto, não possuir um rosto, mas uma máscara, e perder o caráter humano, pois é mais máquina do que gente. É bastante sintomático também o representante do mal parecer acuar e ser mais eficiente do que o representante do bem. É bastante sintomático ainda este ter um rosto de jovem. Faz-se assim uma ligação com o público-alvo do filme, que acaba se identificando com a personagem.  
Entretanto, tudo o que se apontou até aqui daria a entender que se trata de um clichê requentado, o que seria uma observação inadequada. Em primeiro lugar, os mitos, como já fora dito em posts anteriores, lidam com estruturas humanas que em qualquer parte do mundo e em qualquer época acabam sendo as mesmas. Assim, utilizam-se sempre os mesmos elementos, os mesmos motivos narrativos. O que importa na avaliação não é o conteúdo, mas como ele é passado ao receptor. Em segundo lugar, há na cena em questão algo que foge rotineiro quando se fala na “eterna luta do bem contra o mal”: o parentesco entre essas duas entidades.
De fato, quando se usa a famigerada expressão “luta do bem contra o mal”, vem logo à mente a ideia maniqueísta de que são duas categorias extremamente opostas. Foge desse padrão, portanto, a confissão de que o representante da positividade fora gerado pelo representante da negatividade. Entretanto, não é uma ideia absurda, que escapa do comum dos fatos. Vemo-la, por exemplo, nas ações que levam a redenção ao protagonista de “A Hora e Vez de Augusto Matraga”, conto de Sagarana (1946), de Guimarães Rosa. Vemo-la também em Til (1872), romance de José de Alencar que também lida com a ideia de recuperação e que está na atual lista de livros do vestibular da FUVEST-UNICAMP 2013.
 Parece então que a grande mensagem é que o mais importante desse combate não é a eliminação de uma ou de outra força, mas a busca de elevação, de resgate. Lógico que, para que isso ocorra, tem que se estar preparado, tarefa para a qual Luke Skywalker não estava. Daí perder a mão e, mais que isso, o choque diante da revelação. Sua única saída foi mergulhar no abismo, símbolo também presente no “A Hora e Vez de Augusto Matraga” e Til. Essa imersão é uma metáfora do mergulho que sempre se faz em nosso próprio eu naqueles momentos de crise para que se saia dela mais fortalecido. É o que de fato Luke Skywalker irá realizar e que se tornará tema do filme seguinte, O Retorno de Jedi (1983). É o que de fato todos nós fazemos em nossos momentos de dificuldade extrema.
Por fim, como exercício, O Magriço Cibernético deixou o vídeo seguinte, edição de uma das cenas mais emocionantes de O Senhor dos Anéis A Sociedade do Anel (2001). Com base nele, o que você é capaz de interpretar? Voltaremos a esse assunto na próxima quarta-feira.

domingo, 1 de julho de 2012

Velhice: para que tocar nesse assunto?


O tema de hoje dO Magriço Cibernético é inusitado porque foge do universo de valores de seus leitores. Trata-se da velhice, um assunto cuja simples nomeação já é difícil. Prefere-se por aí a expressão politicamente correta “melhor idade”, como se essa substituição fosse eliminar a carga negativa que a outra palavra traz. Para reforçar o que se diz, basta lembrar uma imagem que circulou pelo Facebook em que se contestava a ideia de que bandas como Beatles, Aerosmith, Iron Maiden, Rolling Stones fossem velhas – o correto seria chamá-las de clássicas. Por fim, em reportagens sobre mercado de trabalho fala-se muito de empresas que se incrementam ao contratar pessoas “mais experientes”. A famigerada palavra outra vez evitada.
Por que fugir do termo “velho”? Parece contraditório, ainda mais que vivemos em um país cuja população idosa se torna mais numerosa. Mas estamos na sociedade do descartável, da novidade acima de tudo. Ter idade avançada é não acompanhar isso e acabar ficando à margem. De fato, em quantas famílias os anciãos são encostados? Não se fala com eles, argumentando-se que têm a mesma conversa de sempre. O motivo, entretanto, é simples: nunca se dá verdadeira atenção a eles, faz-se de conta que se está dialogando com eles, o que acaba impedindo a alteridade, a troca de informações, valiosa para o desenvolvimento mútuo.
Não se está ignorando que a chegada da velhice traz muitos aspectos negativos, como a decrepitude física, bem observada por Drummond em “Dentaduras Duplas”, um dos momentos mais ácidos de Sentimento do Mundo (1940). Tais são bastante conhecidos. Mas o estranho é que não se comenta na mesma proporção os defeitos da infância, da adolescência e da juventude. Quando são mencionados, muitas vezes é com carinho e benevolência.
Enfim, o que temos é um mundo centrado na juventude. Basta ver quem aparece feliz nas propagandas de refrigerantes, cervejas, sucos, cremes dentais, adoçantes, caldos de galinha, automóveis. Dentro dessa lavagem cerebral, fica praticamente impossível enxergar valores positivos na velhice, que não é mais vista como fonte de uma sabedoria adquirida com o acúmulo de experiências de vida, imagem muito bem sintetizada na figura do Velho do Restelo, dOs Lusíadas (1572), de Camões. Hoje, gente idosa é ridicularizada.
Fica, portanto, consagrada a frase “envelhecer é uma merda”, tão famosa que até sua autoria se perdeu – dizem que é de Paula Burlamaqui, Rubem Braga e até, para variar, Clarice Lispector. De fato, envelhecer é uma merda porque a vida é uma merda. Ou melhor, vivemo-la como tal. Enquanto isso, vamos alimentando uma esperta indústria estética de botox, cirurgias plásticas, tinturas e quejandos. Mas será que a essência da vida está na barriga rasgada, no vigor físico, na ausência de rugas ou de cabelos brancos, na ereção eficaz?
Não temos a sabedoria simples de Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa (1888-1935):

Quando, Lídia, vier o nosso outono
Com o inverno que há nele, reservemos
Um pensamento, não para a futura
Primavera, que é de outrem,
Nem para o estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa
O amarelo atual que as folhas vivem
E as torna diferentes.

De acordo com esse poema, a chegada do nosso outono (a velhice), que já tem dentro de si a ideia de inverno (morte) deve ser acompanhada apenas da preocupação com o momento presente. Não se deve pensar mais na primavera (juventude), que já não nos pertencerá. A velhice é, portanto, o momento das folhas amarelas, que não são nem melhores, nem piores que as verdes. Apenas diferentes.
Aceitar as transformações do tempo é agir sabiamente. Mas quem o consegue? Somos tão apegados à vida que paradoxalmente não sabemos usufruí-la. Somos tão ligados à existência que a espichamos em detrimento dela própria, fazendo-a perder a intensidade. Talvez por isso desvalorizemos a velhice, pois ela é sinal de que o fim está próximo. Sinal de que não aproveitamos o quanto queríamos. Sinal do "agora já é tarde". Sinal do inexorável. Se, ao contrário,tivermos uma bem planejada passagem na terra, com cada fase aproveitada adequadamente, poderemos mudar até a nossa ideia de funeral, como no vídeo apresentado acima, do filme Sonhos (1990), de Akira Kurosawa. Ao invés da soturnidade, o festejo, a comemoração do final de um espetáculo simples e grandioso: a vida. Mas, como o próprio nome do filme indica, isso é uma fábula, um sonho, uma quimera. Infelizmente.