domingo, 26 de fevereiro de 2012

Propaganda do Jaguar - mais considerações sobre texto

Para reforçar o que foi apresentado em um post anterior sobre os elementos que constituem um texto, apresenta-se aqui uma propaganda lindíssima (beleza nem sempre é sinal de bom caráter) feita para reerguer a marca Jaguar e que causou polêmica por ostentar valores que muitos apreciam, mas poucos têm atualmente a coragem de confessar – em geral somente os que são ricos de dinheiro e pobres de espírito, que infelizmente ainda fazem muito sucesso na grande mídia.
O primeiro ingrediente que surge nesse comercial é a música, com toques delicados que criam um clima feérico e onírico, remetendo com eficiência à felicidade atribuída à infância. Assim, associam-se todas essas imagens agradáveis ao carro, apresentado como o veículo dos sonhos.
Ao fundo também do comercial ouve-se a voz nobre de um homem que nos descreve as maravilhas de se ser deslumbrante (gorgeous). Quem é deslumbrante merece atenção imediata, quem é deslumbrante faz o esforço parecer sem esforço, quem é deslumbrante fica acordado até tarde e ainda fica deslumbrante, quem é deslumbrante não tem amor à lógica, todos se importam com o que dito por alguém deslumbrante, quem é deslumbrante consegue entrar em qualquer lugar, quem é deslumbrante não consegue ser comum mesmo quando tenta, quem é deslumbrante não se preocupa com o que os outros estão fazendo, quem é deslumbrante nasceu desse jeito, quem é deslumbrante supera tudo. Por fim, vale a pena ser deslumbrante.
Como se vê, o termo gorgeous é dito de forma tão constante que acaba se tornando a marca registrada desse comercial. E a sacada inteligente dessa propaganda é unir a mensagem à música, fazendo com que se crie a ideia de que o grande sonho, que nos restitui à tão desejada felicidade perdida, é ser deslumbrante.
O problema é que se trata de um comercial de automóvel. E o que ele está tentando nos dizer? Se alguém quiser ser deslumbrante, basta possuir um Jaguar. É uma afirmação que não sobrevive por dez segundos ao crivo de uma análise racional. Entretanto, a racionalidade não é um dote plenamente utilizado pelos humanos. Ciente disso, a publicidade despreza questões racionais e atua sobre o inconsciente do seu público. É o que a propaganda aqui analisada confirma. Tanto que ela vai utilizar intensamente esse tipo de associação.
Para confirmar o que se está dizendo, é importante notar que pouco se vê e se fala do carro em si. Qual seu consumo? Potência? Autonomia? Segurança? Quantos airbags? Tem computador de bordo? Vai de 0 a 100 km/h em quantos segundos? Nada disso. O que interessa é mostrar iate, festa, helicóptero, ostentação de luxo e felicidade. É mostrar que não se perde o glamour após uma noite de sono. É mostrar modelo de braços abertos como um pássaro (curiosa e inteligentemente uma andorinha aparece logo após essa cena), um gesto que se repete no cabelo, vestido e folhas de planta esvoaçantes ao vento. É um jogo de metáforas e comparações que mostra a conquista de um grande sonho: voar. E poder voar é ter poder.
Portanto, a ligação de todos esses elementos produz um texto, pois eles, no conjunto, passam um sentido, uma mensagem: possuir um Jaguar é ser deslumbrante, e ser deslumbrante é ser poderoso. É ser feliz.
P.S.: A Jaguar, talvez por causa da polêmica causada pela propaganda apresentada, lançou algum tempo depois outra, que por fim mostra bem mais as qualidades de seu automóvel. Entretanto, ela continua se utilizando das técnicas típicas da publicidade. Você consegue detectá-las e dizer que mensagem esse texto passa? Ei-lo:

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Carnaval

O Carnaval ultimamente vem sendo associado à overdose de axé e congêneres, executados até a exaustão. Ou então é associado a infindáveis desfiles com sambas de enredo de estilo pobre, metáforas frouxas, clichês intermináveis num campeonato em que prevalece a indigência intelectual. É uma festa tão apreciada que acaba sendo imitada nas micaretas que se espalharam no decorrer do ano. Tão valorizada por aqui que nos dá o apelido de a Terra do Carnaval, onde, reza a tradição, tudo só começa a funcionar seriamente após a ressaca dessa festa.
Para se sair desse profundo mar da intelectualidade rasa, vale a pena relembrar alguns aspectos ligados à origem desse evento. Há várias teorias sobre sua origem, todas ligadas à ideia de que era um período de exceção, de intervalo de uma realidade que se lhe opunha. Se o cotidiano era de trabalho, o Carnaval era o momento em que se podia entregar à diversão. Se o cotidiano era de pobreza alimentar, o Carnaval era o momento em que se podia entregar à comida e bebida. Se o cotidiano era de respeito aos ideais da espiritualidade, o Carnaval era o momento em que se podia entregar aos prazeres da carne. Se o cotidiano era de apego rígido às hierarquias sociais, o Carnaval era o momento em que se podia desrespeitá-las, tendo até mesmo uma figura pândega que ridiculamente imitava (momo era o nome desse tipo de encenação) o rei – daí a tradição do Rei Momo. Em resumo, não é demais repetir, essa festa era uma exceção, uma quebra do cotidiano e não um acontecimento a ser almejado para todo o sempre.
É preciso, entretanto, que se deixe bem claro que não se está renegando o riquíssimo processo de carnavalização (celebrado por intelectuais que vão de Oswald de Andrade a Mikhail Bakhtin), segundo o qual há em certos povos uma busca intensa (consciente ou não) de inversão de valores. Essa técnica cultural nada mais é do que um saudável respiro que nos permite aguentar as dificuldades de nossa existência. Está-se, na verdade, reclamando do que hoje se fez do Carnaval: uma entrega desenfreada ao hedonismo fútil, incentivado até à estafa pela mídia, que faz com que se patine ou até mesmo se atole na lama cultural.
E é por causa dessa necessidade natural de distensão, típica do Carnaval, que O Magriço Cibernético apresenta um respiro a esse evento, sem, de certa forma, sair dele. Salutar paradoxo. Assim, o que se está apresentando aqui é um trecho de As Quatro Estações (1723), de Antonio Vivaldi. Trata-se de uma obra que foi planejada como se fosse multimídia: ela era tocada acompanhada da apresentação de quadros e da recitação de sonetos.
No trecho acima, ouve-se “O Inverno”, concerto cuja sonoridade se esforça por sugerir essa estação. No primeiro movimento (“Allegro non molto”), a animação que suas notas musicais transmitem se refere à guerra dos ventos frios que nos fazem bater os dentes. Já no segundo movimento (“Largo”), sugere-se a alegria e a tranquilidade da situação confortável de se estar diante da lareira, livre da chuva gelada e inclemente do mundo exterior, representada pelos violinos que são dedilhados – processo conhecido como pizzicato. Por fim, o terceiro movimento (“Allegro non molto”) é bastante humorístico. Sugere a lentidão cuidadosa de alguém que anda preocupado em não escorregar no chão afetado pela baixa temperatura. Esforço inútil, pois a pessoa acaba caindo. Então ela se levanta e passa a andar bem mais rápido, imaginando que assim não cairá mais.
Mas o que mais chama a atenção nesse vídeo gravado em 1988 em Veneza é que no começo seu diretor, Anton van Munster, faz uma referência aos célebres carnavais de Veneza e seus bailes de máscara. Nessa festividade, seus integrantes tinham noção, ao que parece, de que não estavam em suas identidades rotineiras. Talvez por isso usassem máscaras – e aqui se é agraciado com a exibição de vários tipos delas, cada uma mais elaborada e graciosa que a outra.
O Magriço Cibernético espera com essa pequena peça barroca, interpretada pelo grupo I Musici, dar uma experiência diferente do que a que está nesse exato momento sufocando os seus leitores..

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Semana de Arte Moderna: 90 anos depois


Tarsila do Amaral, Abaporu (1928)

13 de fevereiro de 2012: 90 anos da Semana de Arte Moderna, o famoso marco inicial do Modernismo Brasileiro. Tão famoso que foi alçado à condição de mito, com todas as suas consequências. Uma delas é negativa – esse evento passou a ser muito comentado, mas pouco entendido em sua realidade.
Para entender esse grande acontecimento da literatura brasileira, um grande crime – pelo menos para aqueles que curtem curiosidades às vezes fúteis – terá de ser cometido. Assim, muito da aura magnífica dessa manifestação vai ter de ser dispensado. É importante, em primeiro lugar, deixar de lado as excentricidades ocorridas no Teatro Municipal de São Paulo. No fundo elas não ajudam a entender o que de importante foi semeado em nossa cultura até hoje. Além disso, os jovens modernistas (que tinham então por volta de 30 anos) podem, em busca de repercussão, ter orquestrado os ataques que sofreram durante a manifestação. Deve-se também lembrar que não houve um caráter programático ao que fizeram, pois tudo fora organizado meio que às pressas, o que talvez explique o ecletismo e até as contradições. É sabido, por exemplo, que a pianista Guiomar Novaes, uma das participantes, fez severas críticas às músicas apresentadas, principalmente as de Villa-Lobos. Ademais, o fato de esses artistas quererem agitar a acomodada e atrasada burguesia paulistana já denuncia que faziam parte do mesmo contexto que criticavam. A busca desesperada por modernidade era uma das faces do provincianismo.
Entretanto, nem tudo merece depreciação na Semana de 22. A maneira como buscaram atualização mostrou um grande avanço em nossa cultura. Não houve, como se propagou, preocupação em se voltar exclusivamente para a cultura brasileira. Mas ocorreu um salutar equilíbrio. Não mais éramos meros importadores passivos dos padrões europeus, como o Parnasianismo, escola literária até então em voga, intensamente fazia. O que aconteceu foi um balanceamento entre a importação dos valores estéticos europeus (as famosas vanguardas como Expressionismo, Futurismo, Cubismo) e uma preocupação em estudar seriamente a realidade brasileira.
Todo esse avanço iria se cristalizar em 1928 no Abaporu, de Tarsila do Amaral, que está no início deste post. Nele percebemos os traços “deformantes” vanguardistas. E temos também o olhar sobre a realidade brasileira. A começar, “abaporu” quer dizer canibal, o selvagem comedor de gente, um tipo que se consagrou nos primórdios da História do Brasil. Além disso, o cacto é outro elemento muito ligado à nossa identidade cultural, sem mencionar o sol, símbolo de nossa tropicalidade, que é reforçada pelo fato do astro-rei parecer mais uma rodela de laranja ou de abacaxi. Mas o mais interessante é que a realidade nacional não é mais vista de forma idealizada, como se dera no Romantismo. Agora há um olhar bastante crítico. Basta notar que o abaporu tem pés e mãos gigantescos, contrastando com a cabeça, que é diminuta. É uma maneira de representar o brasileiro como um povo de muita ação e pouca reflexão.
O curioso é que esse quadro surge na época em que todo o contexto que dera origem à Semana de Arte Moderna já estava por ser sepultado. As oligarquias que sustentaram esse evento, já em crise por causa das constantes baixas do preço do café, iriam ser solapadas pela República Nova, a grande revolução que instituiu um novo Brasil. Essa obra de Tarsila do Amaral, portanto, ficaria como espólio daquela agitação ocorrida no Teatro Municipal de São Paulo. Uma herança bastante lucrativa, pois se tornou moeda muito usada no pós-22. Em suma, o que se deve ter em mente é que muito mais importante do que a Semana foi a sua herança.
O legado de 22 foi a preocupação, ainda viva atualmente, em estudar seriamente a identidade brasileira. É o que se vê em Pau-Brasil (1924), livro em que Oswald de Andrade manifestava a preocupação em apresentar o que era típico da cultura brasileira para exportar para a Europa. É o que nota também em Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, monumento literário que narra a vida de um herói amoral, imoral, malandro, preguiçoso e lascivo, uma pretensa representação do caráter nacional. É o que se observa ainda no “Manifesto Antropófago” (1928), de Oswald de Andrade, talvez o mais importante elemento de todo esse grupo.
Para o grande iconoclasta paulista, a cultura brasileira não havia nascido com a Carta de Pero Vaz Caminha, de 1º de maio de 1500. Nosso surgimento como nação se dera 56 anos depois, quando da devoração do Bispo Sardinha pelos caetés. Na verdade, o que Oswald de Andrade propunha era uma alegoria muito válida. Quando o selvagem comeu o religioso europeu, ele nos ensinou, primeiro, que sempre há utilidade no elemento estrangeiro e que este, ao ser engolido, será incorporado – se nutritivo – ao organismo. Por fim, a deglutição do forasteiro não fez com que o antropófago deixasse de ser o que sempre foi. Em outras palavras, a cultura brasileira se caracteriza em aproveitar o que há de útil no estrangeiro, o que não necessariamente implica a perda de nossa identidade.
Esse dom nacional pode ser encontrado em vários exemplos. Encontramo-lo quando Tom Jobim, João Gilberto e Vinicius de Moraes incorporaram o cool jazz ao samba, criando a Bossa Nova, que fez muito crítico caturro torcer o nariz. Hoje ninguém mais estranha esse elemento em nossa cultura. Vemo-lo na Tropicália, em que Caetano Veloso surge tocando guitarra elétrica – instrumento tipicamente estadunidense – em um festival de música popular brasileira, o que fora considerado um acinte para os tradicionalistas. Hoje ninguém mais estranha esse elemento em nossa cultura. Enxergamo-lo quando o funk fora importado dos Estados Unidos e, digerido, se tornara tão brasileiro que passou a ser exportado. Hoje ninguém mais estranha esse elemento em nossa cultura. Detectamo-lo no momento em que o sertanejo se misturara ao country, passando pouco depois a ser divulgado lá fora, como atesta o famigerado hit de Michel Teló. Hoje ninguém mais estranha esse elemento em nossa cultura.
 Assim, deve-se repetir, a grande importância da Semana de Arte Moderna foi o seu legado, que está na constante incorporação para constante reinvenção cultural. Parodiando o estudioso Alfredo Bosi (História Concisa da Literatura Brasileira), que disse que o Modernismo está sempre se modificando, deve-se dizer que o que esse movimento nos trouxe é o fato de a identidade brasileira também estar sempre se transformando. Isso talvez não seja novidade, mas a consciência dessa qualidade nos dá um lugar especial no contexto mundial.


quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Texto - considerações básicas

É importante fixar uma ideia: o conceito de texto. Um amontoado de ideias por si só não constitui um texto. Assim, na análise do quadro do post anterior (O Despertar da Inocência), um gato brincando com um passarinho não significa o predador que não prende sua presa. Só pode simbolizar isso dentro daquele contexto em que se encontra, graças à ligação que estabelece com outros elementos presentes na pintura.
Para que tudo fique mais claro, é útil lembrar que a palavra texto tem a mesma origem do vocábulo tecido. Tendo o mesmo nascimento, carregam sentidos semelhantes. Todo tecido é feito de um conjunto de fios. Mas não basta que esses existam – é necessário que se garanta uma coesão entre eles. Tanto que se a ligação é fraca, o tecido se esgarça, se desmancha, em suma, não se mantém inteiro. O mesmo ocorre com o texto. Ele não é apenas um amontoado de palavras, frases, orações, períodos – é necessário que haja uma ligação entre os elementos que o compõem. E quanto mais fortes essas junções, quanto mais coesas, mais eficiente se mostra o texto.
Para exemplificar o que se expõe aqui, basta usar a propaganda acima da Kaiser. Nela notamos vários elementos que, ligados fortemente entre si, vão constituir uma mensagem que, no exíguo período de trinta segundos, venderá mais do que um produto – venderá um conceito, um comportamento, um estilo de vida. Essa é a grande e diabólica capacidade de um comercial.
Para começar, vale notar como a cor predominante no logotipo da Kaiser está presente nas peças de roupa diminutas das modelos. Estabelece-se uma aproximação entre a sensualidade das mulheres e o produto que pretende ser vendido. Quem degustar a Kaiser, vai poder também desfrutar essas beldades. É um raciocínio idiota, mas infelizmente eficaz, tanto que hoje não é permitido aos comerciais de cerveja usarem esse tipo de estratégia que crie empatia com o telespectador.
Para provar que não se está exagerando na análise, necessário se faz buscar outros fios que, ligados à ideia que acabamos de apresentar, confirme o exposto. A cor da roupa das moças e da Kaiser – vermelho – é bastante apelativa. Ela atiça a nossa vontade. Tanto que é a cor presente na quase totalidade dos logotipos de lanchonetes, principalmente as fast food. É um ataque sagaz que se faz ao nosso subconsciente, elemento que comanda boa parte de nossas vontades e comportamentos.
Além disso, os gestos que elas fazem, cheias de caras e bocas, revelam sensualidade. Ainda mais que realizam tudo muito lentamente, ilustrando a frase ambígua que dá título ao comercial: devagarzinho tudo é mais gostoso. Se até aqui a mais ingênua das criaturas se recusa a admitir que a sexualização está sendo intensamente utilizada para a venda do produto, pede-se que se veja a cena final do comercial. Todo bom conhecedor de cerveja sabe que uma garrafa dessa bebida não pode ser segurada no bojo. E por que a sensual modelo o faz? Por fim, é crucial notar a posição em que ela deixa o vasilhame. O grand finale é a imagem que sugere uma mulher satisfeita diante de um falo igualmente satisfeito.
Enfim, deve-se ter sempre esse ponto em mente – um único aspecto não é capaz de dar sentido ao texto. Não é porque se usa o vermelho que se está fazendo um apelo sexual. Mas a utilização do vermelho entre tantos outros elementos arrolados acima é que acaba criando a sensualização da propaganda da Kaiser. Em resumo – nunca é demais repetir – um texto se faz pela ligação estabelecida entre os diferentes elementos que o compõem.
Para reforçar tudo o que se apresentou aqui, O Magriço Cibernético vai se valer de um outro comercial de outro setor poderosíssimo que eficientemente tem se utilizado de técnicas propagandísticas para incentivo ao consumo: o automotivo. Basta lembrar que um carro é apenas um instrumento de locomoção, nada mais. Entretanto, graças à eficiência da publicidade, há décadas ele tem se transformado em um ideal de vida a ser buscado. Que elementos você consegue identificar no texto apresentado abaixo que contribuem para a transmissão da sua mensagem?

domingo, 5 de fevereiro de 2012

O Despertar da Consciência - Luísa, Canadá; Vítor, Rio


William Hunt, O Despertar da Consciência (1853).


Um quadro de William Hunt, de 1853, parece tornar-se bastante atual e oportuno: O Despertar da Consciência. Ele retrata a situação de uma manteúda, ou seja, mulher sustentada por um homem com quem não é casada. Isso pode ser visto na pintura por muitos detalhes: a jovem tem vários anéis, mas nenhum na mão que indica matrimônio; a cartola sobre a mesa, à esquerda, aponta que ele é visitante naquela casa que patrocina; ela está com uma saia rendada que na verdade é roupa íntima – uma combinação – junto de um homem de roupa social.
Entretanto, o mais importante nessa obra não está na apresentação do seu momento presente. De fato, a situação da moça é de conforto (note a decoração caprichosa da casa), prazer (observe a roupa íntima e o ambiente privado) e alegria (basta ver o piano). Mas tudo isso ela adquire por ser objeto sexual do cavalheiro – essa conotação sensual está na intensa utilização de vermelho na composição. É uma condição cômoda, mas precária, o que indicam o desfiado do tapete no canto inferior direito, a luva largada no chão – um alerta sobre a condição descartável da jovem – e o gato brincando com o passarinho à esquerda, abaixo da mesa – uma repetição da cena central.
A grande mensagem do quadro está na luz, que se percebe no rosto da moça e que vem de fora, como se comprova no espelho atrás dela. É o mesmo brilho que recai sobre o desfiado do tapete. O recado: a pobre mulher precisa sair dessa situação periclitante. E o primeiro passo já foi dado, como se percebe na expressão enlevada da amante, bem diferente da do homem, completa e mesquinhamente alheio ao momento especial. Até a postura da adúltera é importante de ser notada – ela está se elevando, se libertando. E seu parceiro não é capaz de detê-la: o braço direito dele está esticado, mas não prende. Como o gato, que estende a pata direita, mas não detém sua presa. A manteúda está saindo da caverna atraída pela luz. Conscientizou-se.
Há poucas semanas um meme tomou conta das redes sociais: “menos Luísa, que está no Canadá”. A razão desse sucesso está no caráter despropositado da frase em meio a uma propaganda de empreendimento imobiliário paraibano. A começar, por que um colunista social e sua família em uma peça publicitária? Que sociedade os responsáveis pelo comercial imaginaram que seria o alvo do texto? Que público seria tão suscetível a um argumento tão pífio? O fato de se estar nas colunas sociais é sinônimo de credibilidade? Além disso, por que simplesmente não se disse “menos Luísa, que está viajando”? A frase que foi ao ar revelou um esnobismo (espero que involuntário) provinciano, o mesmo que se encontra em setores da famigerada elite paulista. Enfim, a notoriedade da frase se deveu ao seu caráter ridículo, termo aqui usado no seu sentido primordial: qualidade do que provoca riso.
Enquanto o sucesso se manteve no campo jocoso, parecia inofensivo. Tudo começou a degringolar quando a Luísa em pessoa foi entrevistada pelo Jornal Hoje, da Rede Globo. Entretanto, só Carlos Nascimento, do Jornal do SBT, é que conseguiu enxergar o descalabro. Todavia, sua crítica, pedindo mais seriedade ao brasileiro, chegou a ser considerada mau humor. Mas ele foi a Cassandra de nossas mídias. Seu vaticínio se concretizou, expondo a nossa precariedade cultural. Circularam informações de que, graças à celebridade, a garota começou a receber R$ 15.000,00 por evento em que aparecia. Talvez não seja verdade. Mas o pior foi ela ser tema de questão de um concurso público de Jaboticabal. É importante selecionar candidatos com domínio de conhecimentos gerais (política, geografia, arte, história, economia), pois tais ajudam em muito na eficiência de um trabalhador. Entretanto, o que o conhecimento do meme “menos Luísa, que está no Canadá” revelaria de competência profissional?
Em 02 de fevereiro, Vítor Suarez Cunha foi espancado no Rio de Janeiro porque defendeu um mendigo que estava sendo surrado por seis jovens, pelo menos três deles da classe média. O rapaz teve afundamento de crânio, de um dos ossos da face e vários dentes quebrados, o que o obrigou a se submeter a cirurgia plástica. Agravante: um dos espancadores disse que não queria que o seu pai, que costumava fazer caminhadas, se visse obrigado a passar por cima do mendigo. A solução simples? Espancar o “obstáculo”. Parece haver aqui a mesma lógica, estranha, dos jovens de Brasília que queimaram um índio porque o confundiram com um morador de rua; ou dos jovens do Rio de Janeiro que espancaram uma doméstica porque acharam que ela fosse uma prostituta.
Mendigos e prostitutas podem ser violentados simplesmente por serem mendigos e prostitutas?
O triste nisso tudo é que Vítor Cunha, que saiu em defesa de um ideal nobre e justo, colocando até sua integridade física em risco, não virou meme. O que se falou dele nas redes sociais? Será que ele esteve nos TT do Twitter?
Comparando-se Vítor com Luísa, que lógica pode ser inferida? Note-se essa relação: o Canadá, país com fama de civilizado, acabou associado a Luísa, protagonista de um fenômeno que revelou nosso comportamento provinciano; o Rio, cidade com fama de barbárie, acabou associado a Vítor, exemplo de integridade e cidadania. Entretanto, qual dos exemplos fez sucesso?
Voltemos então a O Despertar da Consciência. Os dois episódios, aparentemente tão díspares, encaixam-se na mensagem passada pelo quadro. Sem dúvida, é mais fácil, cômodo e aparentemente prazeroso entregar-se a um comportamento sedutor e igualmente vazio. Tanto que é o que faz sucesso nas redes sociais. Aparentemente, não há nada de nocivo nisso. É uma situação cômoda, mas precária. Precária porque o fato de esse tipo de acontecimento ganhar mais espaço do que exemplos dignos de ética e cidadania revela que nossos valores humanos estão degradados. Há que se ter um esforço em se levantar, libertar-se, ainda que solitariamente. Sair da caverna graças à atração pela luz. Conscientizar-se.



quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

"Perfeição", do Legião Urbana: Ironia

No post de 19 de janeiro de 2012 foi apresentado o vídeo “Ler devia ser proibido”, no qual se notou a utilização intensa de uma figura de linguagem: a ironia. Os comentários enviados tanto ao Facebook quanto ao Twitter a respeito daquela peça publicitária tornaram necessárias algumas observações sobre a manifestação lingüística em questão.
Para começar, ironia é o mecanismo de se dizer o contrário do que se está pensando. É um procedimento que não deve ser confundido, entretanto, com a mentira. Nesta, diz-se algo para encobrir completamente a verdade. Já naquela figura de linguagem ocorre um trabalho muito mais sofisticado, pois, ao mesmo tempo em que se esconde uma ideia, encontram-se pistas para que o sentido encoberto seja notado.
 No caso do vídeo “Ler devia ser proibido”, apresenta-se um conjunto de razões para que a leitura seja banida, mas todas elas destacam fatos positivos. O hábito em questão permite que o leitor adquira mais criticidade, criatividade, conscientização, em suma, se torne mais humano. Além disso, há uma sequência de fotos em que se associa a leitura a imagens felizes, muitas delas de vários ícones de nossa civilização: Martin Luther King, Einstein, Betinho, Dalai Lama. Assim, todo esse conjunto permite a percepção de que a verdadeira mensagem não é a defesa da proibição da leitura, mas a apologia a essa atividade.
Era importante, além disso, perceber que a propaganda em análise apresenta a ironia de uma forma diferente do rotineiro. O que mais se vê é essa figura empregada para intenções sarcásticas, depreciativas. Quando o narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas nos informa, por exemplo, que a cortesã Marcela o amou durante quinze meses e onze contos de réis, na verdade o que ele está designando como amor não passa de interesse material. Assim, a prostituta de luxo acaba por ser caracterizada negativamente. Em “Ler devia ser proibido”, entretanto, essa figura de linguagem é utilizada para destacar qualidades positivas.
É importante ressaltar, portanto, que a ironia é uma figura de linguagem que depende de um contexto. Daí o erro de uma questão do último vestibular da PUC-SP, na qual se entendia como irônica a fala do diretor do reformatório enderaçada a Pedro Bala, protagonista de Capitães da Areia, prometendo a regeneração do líder dos trombadinhas. Nada no contexto daquela cena permitia uma abordagem irônica, pois na cabeça do educador os castigos corporais eram vistos piamente como mecanismos pedagógicos válidos para “consertar” o comportamento do garoto. A frase só poderia ser classificada como irônica se na verdade o pedagogo não acreditasse no que considera como resgate moral do jovem.
Outro ponto importante que merece destaque é que a ironia é uma figura de linguagem sofisticada, como já se disse. Assim, ela só pode ser produzida por quem tem maturidade suficiente para enunciá-la e só pode ser dirigida a quem tem capacidade de entendê-la, do contrário ela acaba se tornando inútil. Isso justifica a dificuldade que O Magriço Cibernético teve de encontrar outro vídeo que exemplificasse esse mecanismo linguístico. No momento em que o nosso paladino quase entregou os pontos é que se deparou com o clipe da música “Perfeição”, do Legião Urbana. Nele, Renato Russo dispara uma sequência gigantesca de atitudes vis da espécie humana que ele afirma que precisam ser celebradas e comemoradas. Fica claro que a intenção do enunciador do texto é desancar uma crítica amarga à mediocridade do barro ruim de que é feito o homem. Nada melhor do que a ironia para atingir tal objetivo.
Em vista, portanto, de tudo o que foi exposto, propõe-se então um exercício simples: explique como é trabalhada a ironia no vídeo a seguir, do saudoso TV Pirata.