sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Mensagem de final de ano

Todo final de ano nos vemos mergulhados em tanta correria – compra de presentes, preparação para festas – que acabamos perdendo o sentido desse ritual em que nos encontramos. Por sorte, a música, metáfora da perfeição do universo, pode ajudar a recuperá-lo. Para tanto, serão analisados dois trechos do oratório Messias (1741), de Handel (1685-1759).
Como já abordado no post de 19 de fevereiro, o Barroco, estilo ao qual pertence a peça aqui ouvida, tem a capacidade de representar ideias por meio de sons esteticamente combinados. Assim, o vídeo acima nos mostra o casamento sublime entre texto escrito e texto auditivo. A começar, ouvimos um trecho de Isaías 60, 2-3:

For behold, darkness shall cover the Earth, and gross darkness the people: but the Lord shall arise upon thee, and his glory shall be seen upon thee. And the Gentiles shall come to thy light, and kings of the brightness of thy rising.

De acordo com a Bíblia de Jerusalém, da Editora Paulus, a tradução seria:

Com efeito, as trevas cobrem a terra, a escuridão envolve as nações, mas sobre ti levanta-se Iahweh e a sua glória aparece sobre ti. As nações caminharão na tua luz, e os reis, no clarão do teu sol nascente.

De fato, a sonoridade arrastada e sombria com que a música começa, seguida pela voz grave do cantor pronunciando palavras de vogal fechada, ressaltam a escuridão que se abate, representando as dificuldades que encontramos no decorrer do ano, o que dá a dezembro um ar de cansaço. Mas a partir da palavra “Lord” tudo se ilumina e os violinos apresentam sons mais agudos. E note a forte presença de ditongos abertos: “arise”, “Gentiles”, “thy”, “light”, “brightness”, “rising”. Isso se soma ao fato surpreendente de serem expressos por um baixo. É como se a mensagem fosse a de que no meio da escuridão surge sempre a luz.


Iconografia do século XVIII presente no mosteiro de Kizhi, Karelia, Rússia

Então se passa para Isaías 9, 1:

The people that walked in darkness have seen a great light, and they that dwell in the land of the shadow of death, upon them hath the light shined.

A tradução, da mesma fonte que a de acima:

O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, uma luz raiou para os que habitavam uma terra sombria como a da morte.

Nesse ponto, volta-se à escuridão do tema, da sonoridade da orquestra e da voz do baixo, concentrada na sintomática palavra “darkness”, que sofre um contraste – expediente típico do Barroco – com o vocábulo “light”, que traz no seu bojo a própria ideia de luz. Esse processo se repete de forma mais intensa com a expressão soturna “shadow of death”, que sofre o embate do igualmente intenso sintagma “light shined”. Resultado: trevas expulsas, por isso a peça termina com violinos em notas agudas.
Abre-se caminho para o próximo passo do oratório, que se baseia em Isaías 9, 5:


Seu texto é o seguinte:

For unto us a child is born, unto us a son is given, and the government shall be upon his soulder, and his name shall be called Wonderful, Counsellor, the mighty God, the everlasting Father, the Prince of Peace.

Cuja tradução, de acordo com a mesma fonte, é:

Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado, ele recebeu o poder sobre seus ombros, e lhe foi dado este nome: Conselheiro-maravilhoso, Deus-forte, Pai-eterno, Príncipe-da-paz.

Aqui já se manifesta o espírito que deve prevalecer no final de ano, cuja essência não é o consumismo disfarçado na grata troca de presentes. Sua bela simbologia na verdade transcende as questões religiosas, servindo até para agnósticos e ateus. Tal está representada na força das saltitantes e agudíssimas notas presentes já desde a graciosa explosão do começo dessa música. Tudo é luz, alegria, confiança representadas no nascimento de uma criança que terá sobre os seus ombros o poder do surgimento de um novo mundo, de uma nova vida. Enfim, a esperança de que os momentos difíceis e sombrios pelos quais passamos no decorrer de 2012 abrirão caminho para muito saber, amadurecimento e felicidade em 2013. Essa é a mensagem que deve ficar em nossas mentes nas próximas duas semanas.


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domingo, 16 de dezembro de 2012

2012 - O que significa essa data apocalíptica?




No post passado, sobre A Confissão da Leoa (2012), de Mia Couto, discutiu-se que arte é confissão. Por meio dela a espécie humana exorciza seus males, o que quer dizer que tais nos são inerentes. Guimarães Rosa já dizia isso em Grande Sertão: Veredas (1956): “o diabo vige dentro do homem”. E um dos demônios que vez por outra vêm à tona é o apocalipse. Agora está na moda falar que essa catástrofe se dará no próximo 21 de dezembro, de acordo com supostas profecias do calendário maia. Até há, no entanto, quem fale que o fim dos tempos só se dará em 2016. Mas já se mencionara 2001, 2000, 1999. E isso não é de hoje. Perto do ano 1000 essas preocupações já haviam vindo à baila. Há, portanto, datas de baciada, num amplo catálogo a atender o gosto do freguês.
      Mas, ao invés de apenas se entregar a essa sanha sadomasoquista e mercadológica ou simplesmente negá-la, devemos analisá-la. E uma maneira interessante de entendê-la pode se dar por meio de alguns blockbusters. Se nos basearmos em Jung, poderemos notar que essas subproduções intelectuais são tão capazes de expressar a nossa alma quanto o são estudos filosóficos, sociológicos e antropológicos. Devemos, pois, olhar para esses filmes e tentar entender por que nos atraem tanto.



          Enfim, quando observamos alguns arrasa-quarteirões que desenvolveram o tema do final dos tempos – Independence Day (1996), Armageddon (1998), Impacto Profundo (1998), O Dia Depois de Amanhã (2004), Guerra dos Mundos (2005), Cloverfield (2008), 2012 (2009), A Batalha de Los Angeles (2011), além da trilogia O Exterminador do Futuro (1984, 1991, 2003) – algumas comparações eclodem. De um lado estão os que mostram que a destruição virá por fatores externos, do qual não temos culpa (películas 1, 2, 3, 5, 6 e 8). Ou será que são repetições da ideia bíblica de que a iniquidade de Jerusalém foi castigada pelo envio por meio da vontade do Senhor de elementos exógenos? Do outro lado estão os que claramente imputam a nós alguma responsabilidade (4 e 7, além da trilogia). Mas, apesar dessa diferença, um ponto eles têm em comum: lidam com relações humanas desmanteladas. Impacto Profundo é inigualável nesse ponto, mas Cloverfield também chama a atenção, pois perpassa sua trama um caso afetivo mal resolvido. Já A Batalha de Los Angeles é tão realista na maneira como mostra esse tema que nem o notamos, de tão entranhado que ele fica no cotidiano.



         Qual a mensagem? Parece ser a de que, em nossa correria, não prestamos atenção ao que realmente importa, que é o contato humano. Para que viver, se não para conviver, e intensamente, com os outros? Mas concentrar-se nesse ponto é reduzir o aspecto mítico da abordagem. Na verdade, o que a obsessão pelo apocalipse revela é que estamos fazendo tudo errado e precisamos desesperadamente corrigir isso.
É aqui que se toca em um ponto interessante. Todo mito apocalíptico traz dentro de si um mito soteriológico, ou seja, que fala de salvação. Estamos mais é voltados para “o dia depois de amanhã”. Não é à toa que a nave de Impacto Profundo se chama Messiah, que é o nome do salvador. Ou que haja verdadeiras arcas de Noé em 2012. Queremos uma ressurreição. Queremos uma nova vida. É por isso que se pode encaixar nessa lista um filme que aparentemente não tem ligação com o tema apocalíptico-soteriológico: Titanic (1997).



         James Cameron, ao narrar o desastre de um navio que nem Deus poderia afundar – como foi dito assim que o artefato tecnológico saía de Southampton –, acabou fazendo um filme que verbalizou o nosso zeitgeist, o espírito de nosso tempo. Temos medo de que nosso hipercontrolado cotidiano – sim, tornamo-nos infelizes e acomodados seres dependentes da rotina – seja inútil, pois não nos afasta de perigosos icebergues: crises econômicas, perda de emprego e qualidade de vida. O que esse blockbuster nos mostra é que o que nos aterroriza não é exatamente o fim do mundo, mas o desmantelamento da sociedade tal qual conhecemos e com a qual já estamos largamente acostumados.
Todas as considerações aqui expostas permitem entender que Titanic representa um anseio de nossos tempos. Rose, na verdade, somos nós. Como ela, somos vítimas de imposições, não apenas da mãe e do noivo. Mas o surgimento de Jack representa o desejo de outro esquema de vida. Anseio escapista, é verdade, mas positivo. Anseio que afundou, mas foi o suficiente para dar um impulso para uma nova existência.
O que todos esses filmes revelam, portanto, é que a espécie humana sabe, ainda que de forma inconsciente, que precisa mudar, construir uma nova forma de vida, uma nova sociedade. Há muito ainda que ser feito. Mas o que já se tem é valioso. Indubitavelmente. O que é bom.

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domingo, 9 de dezembro de 2012

As Confissões da Arte: A Confissão da Leoa, de Mia Couto


      É conhecidíssima a ideia de que a arte imita a vida. Encontraríamos em suas manifestações, portanto, uma mimese do mundo tal qual o conhecemos. Mas há também uma variação, que prega que a vida é que imita a arte. Prova disso é como os produtos estéticos foram capazes de ditar padrões, comportamentos. Basta lembrar a onda de suicídio coletivo que Werther (1774), de Goethe, provocou na Europa. Ou, mais recentemente, os modismos inspirados no que a televisão e cinema produzem. Entretanto, esses dois caminhos, se seguidos à risca, podem provocar uma diminuição do poder artístico, pois, no caso do primeiro, submeteria as obras de arte a meros documentários, enquanto o segundo as empurraria para a doutrinação.
Por sorte, o verdadeiro labor artístico é mais do que imitação. Sua riqueza está em superar aquilo em que se inspira. É também a sua segurança. Basta lembrar a imagem apresentada no filme Excalibur (1981), em que Merlin chamava a realidade de dragão e ainda dizia que olhar diretamente para ele é ter a alma queimada, ou seja, é entregar-se à loucura. Então, para enxergá-la melhor, o mais adequado seria observar o seu reflexo – as manifestações artísticas. E tal é a magia de A Confissão da Leoa (2012), o mais novo romance do escritor moçambicano Mia Couto.
A narrativa se baseou na excursão que o autor fizera pelo norte de Moçambique em 2008, quando se deparou com a notícia de que leões estavam atacando a população daquela região. Tal qual ocorre em Kulumani, localidade em que se passa a história. É lá que mora Mariamar, narradora de metade do livro. A outra metade está a cargo de Arcanjo, caçador contratado para dar fim ao terror que assola aquela população. Mas há algo mais do que os nomes mítico-poéticos que os unem, algo mais do que um encontro que tiveram no passado. Ambos são vítimas de um histórico de vida despedaçado.
Conforme se vai mergulhando nos relatos que os dois vão montado, esquece-se a expectativa de um reencontro e começa-se a vislumbrar um painel fortíssimo, típico de Mia Couto. Depara-se com uma sociedade em que mulher é literalmente vista como não-humana, não-gente; em que um marido se dá ao direito de costurar (não se está falando em sentido conotativo!) a vagina da esposa quando ele precisa viajar; em que um pai abusa sexualmente da filha e esta é que é vista como a vilã; em que uma mulher é estuprada por um grupo só porque invadiu um espaço sagrado masculino – e ela ainda ter como resposta a conivência das autoridades.
Todos os exemplos arrolados acima – e há muitos outros – causam-nos horror, porque estamos de fora, pertencemos a um mundo dito civilizado. E quando nos defrontamos com o narrado, vemos que, se parte daquela sociedade encara tudo isso como natural, outra parte, perdedora, considera-a uma selvageria. Mas esta não faz nada, silencia-se. Somente a obesíssima Dona Naftalinda, cônjuge do administrador, protesta, mas diante da inércia do seu meio, não produz eco. E o mais interessante é que se sente nas entrelinhas um embate entre um velho e um novo mundo, entre uma velha e uma nova África. Nesse ponto, é preciosa a oposição que é feita entre as galinhas domesticadas (aliás, grande símbolo das mulheres de Kulumani, massacradas pelo machismo – aves que não voam) e os urubus que tomam o lugar dessas aves quando a missão católica portuguesa se vai.  
Toca-se aqui em um dos elementos mais vitais do romance. A necessidade de voar, de liberdade, de direito ao desenvolvimento de todas as potencialidades, misturando-se à necessidade de sobreviver à miséria. Aqui está a representação da força feminina, que nutre A Confissão da Leoa. A força feminina ligada à geração de vida. E ligada à terra, à alimentação, à sobrevivência. Ligada, portanto, à pátria, à mãe África. Aqui Mia Couto permite-nos alargar o olhar interpretativo. Fala-se, então, de um continente desrespeitado, colocado na periferia, explorado durante a colonização e, independente, massacrado pela guerra civil. É o despedaçamento da pátria que acaba fabricando os ataques da leoa. Ou que acaba explicando o despedaçamento psicológico das personagens do livro. 
Mas como garantir que a fragmentação da personalidade é apenas fruto de condições externas? E se for verdade a tese bíblica de que somos todos de um barro ruim? E se o homem mergulhou nessa matança por sua má índole mesmo? Tanto que essa carnificina ocorreu antes e depois da independência. Reforçar-se-ia então uma ideia reiteradamente citada na obra, a de que tudo está dentro de nós. O mal, portanto, não é externo.
Mia Couto, portanto, confirma em A Confissão da Leoa porque é um dos melhores escritores africanos do século XX, já que mergulha na essência humana e consegue expô-la. E o faz de uma maneira eficiente, pois seu realismo mágico acaba se tornando uma válvula de escape para que se veja os destroços com que está lidando. Utilizando-se da linguagem do mito, faz-nos entender os problemas de nossa essência fazendo-nos vivê-los, senti-los graças à força da bem empregada primeira pessoa. E sem que precisemos ser moçambicanos para tal. Sua capacidade de enfocar o universal no regional lembra grande mestres, como Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Machado de Assis, para ficar nos brasileiros. Vale a pena lê-lo.
  

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domingo, 2 de dezembro de 2012

A Licença Poética




Mathis Grünewald, O Retábulo de Isenheim (c. 1510-5)
Conforme já foi dito várias vezes aqui nO Magriço Cibernético, todo texto é um conjunto de elementos que, ligados entre si, estabelecem uma coerência, o que gera seu sentido. Muitas vezes os erros de interpretação ou mesmo de redação são fruto da má manipulação desses ingredientes, provocadora de dissonâncias semânticas comprometedoras, como seu viu no post de 01 de março de 2012. Outras vezes é justamente essa discrepância que dá charme à mensagem, como seu viu no post de 03 de março de 2012. Entretanto, há momentos em que tal discrepância precisa ser ignorada, pois ela não prejudica o sentido, muito menos serve para reforçar uma ideia. Quando isso acontece, diz-se que ocorre a licença poética, ou seja, a liberdade de se usar construções que não precisam se apegar a regras, até mesmo as que se referem à noção tradicional de coerência.
No quadro acima, O Retábulo de Isenheim, que hoje está no Museu de Unterlinden, em Colmar (França), notamos alguns “atentados” à lógica. O mais gritante deles é São João Batista estar à direita da cruz. Sabe-se que esse santo fora decapitado por Herodes anos antes da crucificação de Cristo. Teria então o pintor alemão praticado um anacronismo grosseiro? Como alguém se meteria a pintar um importante episódio cristão e demonstrar tamanha ignorância da Bíblia?
Na verdade, tal discrepância precisa ser ignorada, pois a inserção da personagem é nada mais do que um caso de licença poética. A função desse actante é de mero símbolo. Não é à toa que ele segura a sagrada escritura e aponta para Cristo, gesto que indica que o que está acontecendo já estava previsto no livro sacro. Não é à toa que a seu pé está um cordeiro, com uma cruz, e vertendo sangue para um cálice – é um eco imagético do Nazareno, o cordeiro de Deus, que tirou o pecado do mundo.
Outro “atentado” à lógica a ser levado em conta é a dimensão física desproporcional de Jesus, ainda mais quando comparado à de Maria Madalena, mais ao pé da cruz. Essa falta de verossimilhança deve ser desprezada, pois o mais importante para o artista era revelar, por meio do tamanho, a estatura religiosa das personagens.
Outro exemplo de licença poética pode ser visto no trailer abaixo, do filme Gladiador (2000):


            Inúmeras falhas são notáveis nesse vídeo: o protagonista, Maximus, usando arreio, uma invenção medieval, portanto, desconhecida dos romanos; ou então um dos gladiadores utilizando uma bola cheia de espinhos, outra criação medieva; ou ainda a personagem principal desatrelar um cavalo que puxava um carro e esse animal possuir equipamento para montaria, o que não faria sentido para a função que estava exercendo. Entretanto, alguns pontos não podem ser considerados erros, como as flechas incendiárias, que de fato não eram usadas pelas legiões romanas. Na verdade, aqui há um caso de licença poética, pois esse artefato bélico serviu apenas para criar o clima pirotécnico tão essencial às produções hollywoodianas. Outro ponto relevante para nossa discussão seria gladiadores lutarem com armas de níveis diferentes, o que ia de encontro às regras da Roma Antiga, preocupadas em garantir igualdade de combate. No filme, para dar mais emoção, deixou-se a desvantagem, pois ela serviu para incrementar valor na trama. Por fim, não se podia esquecer o que mais os historiadores de plantão criticaram: era impossível um general romano se tornar escravo e depois virar gladiador. Entretanto, essa questão acadêmica se transforma em filigrana diante da lógica da construção narrativa, já que é um elemento que engrandece o protagonista.
Mas é em poesia que a licença poética é mais facilmente reconhecida. Ela que nos faz não só aceitar o que chamam de erros gramaticais, como também os ligados à lógica. É o que vemos, por exemplo, na arquifamosa “Canção do Exílio” (1843), de Gonçalves Dias, da qual foram extraídas a seguir as duas primeiras estrofes:

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

         A lógica dita que o sabiá não canta na palmeira. Entretanto, o poeta teve de atropelar a razão para juntar dois grandes símbolos de nossa pátria. Além disso, nada sustenta a tese de que o nosso céu tenha mais estrelas que o da Argentina ou do Uruguai, por exemplo – a não ser a necessidade de se dar um tom mítico, fabuloso à nossa terra.
Portanto, devemos ter cuidado ao avaliar o que à primeira vista pode parecer uma falha na ligação entre elementos de um texto, principalmente os artísticos. Na verdade, o que pode estar acontecendo é nada mais do que uma leitura sob um diapasão errado.
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quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Harry Potter e o seu valor na literatura


Vindo a público em 1997, Harry Potter e a Pedra Filosofal abriu caminho para uma série de estonteante sucesso que chegou a vender mais de um bilhão de livros, um feito digno de respeito. Entretanto, existe a ideia de que se deve desconfiar de tudo aquilo que provoca frenética movimentação ao seu redor, já que a turba costuma se orientar por critérios (se tais existem) desarrazoados. É fato. Mas a criação de J. K. Rowling merece uma análise mais serena e menos amarga, ou até menos despeitada, recalcada ou invejosa.
O primeiro aspecto que interessa quando se está diante de um texto literário é a sua linguagem, no que a obra em questão não fracassa. Há a utilização de um ritmo simples, fluente, que a torna cativante, ainda mais com a utilização engenhosa de neologismos, muito bem traduzidos na edição brasileira. Além disso, a informalidade que a narradora assume está no ponto certo, sem descambar para o desleixo e garantindo um tom de grata conversa, como se estivéssemos nos aconchegantes sofás de Grifinória, embalados por histórias carregadas do maravilhoso e que nos deslocam de nossa realidade de trouxas.
Nesse ponto, algumas considerações merecem ser observadas. Harold Bloom, valoroso cavaleiro em luta contra o processo de imbecilização de que vem sendo acometida nossa cultura nos últimos tempos, condenou Harry Potter por ser uma colcha de retalhos extremamente gastos, ou seja, uma colagem de metáforas tão esgarçadas que seriam clichês sem vida. Pode-se lembrar, todavia, que a obra sobre o pequeno bruxo é excelente no que se propõe, que é atender aos anseios de seu público juvenil. Não se deve procurar nela características de Machado de Assis, Clarice Lispector, James Joyce, Marcel Proust ou mesmo Lewis Carroll. Provavelmente Rowling não aspirava a isso quando planejou sua série, pois ninguém é obrigado a tal. Além disso, há quem diga que nada mais se criou desde a Idade Média, sendo toda nossa produção cultural repetição de arquétipos, de uma forma ou de outra. A autora inglesa tem seu mérito em saber lidar com esses retalhos (Fênix, pedra filosofal, elixir da longa vida, Pégasus, dragões, hipogrifos, unicórnios) e colá-los de uma maneira que emociona seus leitores, afinal, esse é um dos mais primitivos desejos da arte de contar histórias. Depois é que houve a preocupação com a manipulação de linguagem, a apresentação crítica da sociedade, a introdução de questões metafísicas. Na verdade, estas são tarefas modernas. E a palavra “modernidade” hoje vem carregada de um ranço doentio.
Fica então a impressão de que a grande qualidade de Harry Potter é proporcionar uma fuga para um passado, para uma inocência perdida. Todos os seus fãs, não importa a idade, seriam na verdade saudosistas. Pode até ser. E não é errado uma obra realizar isso. Mas há que se ter cuidado com o conceito de “inocência”.
Rowling não transformou sua obra em mais uma daquelas juvenis preocupadas com a assepsia temática. Na verdade, ela honrosamente respeitou seu público ao não subestimá-lo, ao não esconder a negatividade da vida. Mas não sobreviveu dela, ao contrário dos programas apelativos como Cidade Alerta ou Brasil Urgente. O foco dos seus romances está em aspectos positivos e, portanto, edificantes. Assim, há aspectos muito fortes, como o submundo do Beco Diagonal. Ou a venalidade de Gringotes. Ou a soturnidade dos comensais. Ou o ritual de magia negra que traz de volta à vida Voldemort. Ou o doloroso contato com a morte de Cedrico em O Cálice de Fogo. Ou questões mais constantes: a pobreza (como a da família Weasley) e o preconceito (contra os “sangue-ruim”). Se há uma fuga para um mundo mágico, nele não se está livre de temas pesados da existência humana.
Repita-se: talvez a inocência da obra esteja em apresentar valores edificantes, ainda mais num mundo niilista ou mesmo hedonista e alienado como o nosso. Os heróis da série não ignoram a malignidade que os cerca, mas aprendem a sobreviver levando em conta talento e esforço, amizade e lealdade e, mais importante, percebem que o eu interior é o que nos guia, indicando o certo ou errado. Essa é a verdadeira base do valioso senso ético. E por que não valorizar livros que conseguem mostrar isso de uma forma tão gostosa?
  
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quarta-feira, 21 de novembro de 2012

FUVEST - algumas considerações


No próximo domingo será realizada a prova da FUVEST, um dos vestibulares mais importantes do país. Aquele que vai prestá-la precisa entender que, pelo menos em Português, nos últimos anos essa avaliação tem-se mostrado sem sustos, artimanhas, mistérios ou segredos. Sua intenção não é descobrir filólogos, linguistas, gramáticos ou literatos, mas apenas selecionar quem tem competência linguística adequada para as diversas carreiras do ensino superior, não importa se de humanas, biológicas ou exatas.
Dessa forma, por exemplo, as questões de literatura não vão se concentrar em literatices sobre  quem escreveu tal livro ou qual o nome de tal período estético. O que se cobrará é o reconhecimento dos mecanismos de funcionamento do texto literário. Assim, pode-se indagar o que a repetição de um evento (consoante, rima, vocábulo, ação, o que quer que seja) tem a ver com a dinâmica da obra em análise.
Nesse ponto, há algo que ressaltar. Já que todo texto literário é um produto social, pode-se cobrar do vestibulando o reconhecimento da relação que um romance ou um poema tem com o seu momento histórico. Assim, o banditismo de Jão Fera em Til é um típico sinal de que a região em que ele se encontra, o interior de São Paulo, ainda não havia se civilizado por completo, abrindo caminho para a utilização desses recursos violentos para a manutenção de uma certa ordem.  Ou então, as plantações de Luís Galvão (cana e café) indicam processos econômicos a que o Brasil havia se dedicado. Até mesmo a posição de sua fazenda revela a maneira como essa região se povoou, concentrada inicialmente em atender a zona aurífera de Minas Gerais. Entretanto, não só de História se viverá. É possível fazer uma ponte com Geografia para entender que o tipo de solo que Alencar chama de rico e ferruginoso é nada mais do que a célebre terra roxa.
Além disso, o candidato deve estar preparado para questões que exigirão a comparação entre as nove obras da lista de livros. Assim, deverá captar, por exemplo, que a presença do comerciante italiano em Til e em O Cortiço revela flagrantes da composição de nossa população. Ou então que a escravidão justifica o comportamento cínico de Brás Cubas ou a desvalorização do trabalho rural como se vê em Jão Fera, de Til, e Jerônimo, de O Cortiço. Sem falar que deixa suas feridas em Memórias de um Sargento de Milícias e Sentimento do Mundo. Enfim, serão questões que funcionarão não apenas como verificação de leitura, mas principalmente de compreensão. Nesse ponto, é bastante válido reler os posts dO Magriço Cibernético dedicados a cada um desses livros (21 de janeiro, 24 de março, 29 de abril, 03 de junho, 17 de junho, 24 de junho, 12 de agosto, 16 de agosto, 02 de setembro, 09 de setembro, 26 de setembro, 03 de outubro, 07 de outubro, 17 de outubro e 28 de outubro).
Quanto às questões de interpretação de textos que não fazem parte da lista de obras da FUVEST, o que inclui os literários e os não-literários, o esquema será basicamente o mesmo: o candidato será instado a observar e identificar os mecanismos de funcionamento da linguagem. Assim, será cobrada não só a compreensão do significado de um texto, mas também a busca, por exemplo, de uma palavra que sintetize as ideias apresentadas. Ou então, de uma expressão que as repita em outras palavras. Ou ainda as manifestações dos diferentes níveis de linguagem, principalmente o formal e o coloquial, assim como a transferência de uma frase de um registro para outro. Mas o que se tem mostrado mais interessante é que muitas vezes essa prova exige que o candidato observe um fato apresentado no enunciado para, sem se preocupar em classificá-lo ou rotulá-lo, localizar uma alternativa em que haja uma frase como o mesmo mecanismo linguístico.
Quanto à Gramática, percebe-se que não há mais espaço para filigranas como a cobrança do tipo de sujeito ou oração, ou a identificação da diferença entre um complemento nominal e um adjunto adnominal, entre um predicado verbal e um predicado nominal. As questões têm-se mostrado mais inteligentes, na medida em que mais razoáveis, pois cobram o que é útil para qualquer profissional, não somente para os especialistas em língua. Assim, quando aparecem testes sobre regência, concordância, crase, nota-se que a resposta é obtida sem absurdos conhecimentos gramatiqueiros, mas com um pouco de raciocínio e intelecção textual. No mesmo campo estão questões que pedem para que o candidato indique o valor de uma palavra, principalmente o de um pronome. Alcança a resposta quem compreende o contexto em que ela está inserida. Ou seja, quem sabe ler.
Enfim, é nesse ponto que a FUVEST tem-se consagrado como um excelente exame. É uma prova que apenas verifica quem tem competência linguística. Essa habilidade será essencial para quem quiser estudar com eficiência na vida acadêmica. Qualquer que seja a carreira.

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domingo, 18 de novembro de 2012

A Propósito do Dia da Consciência Negra

Às vésperas do Dia da Consciência Negra, O Magriço Cibernético resolve colocar em foco, por meio de mais uma prática de intelecção, considerações ligadas a essa comemoração, que não deve ser entendida como sinônimo de festejo, mas de evento que precisa ser lembrado em conjunto (co+memorar). Não se pode deixar de ter em mente a importância dessa etnia em nossa identidade cultural. Mas, mais importante, não se deve esquecer o quanto tal grupo foi vítima de injustiças, para que nem a sombra disso se repita.
O primeiro texto a ser analisado é a música “Strange Fruit”, na verdade poema que o norte-americano Lewis Allan (pseudônimo de Abel Meeropol) publicou em 1936, inspirado pelas fotos de linchamentos de negros que ocorriam principalmente no sul dos Estados Unidos pelos idos da década de 1930. Essa composição consagrou-se na voz de Billie Holiday em 1939, mas aqui é trazida na interpretação doída de Nina Simone:

Southern trees bearing a strange fruit
Blood on the leaves and blood at the root
Black bodies swinging in the southern breeze
Strange fruit hanging from the poplar trees

            Pastoral scene of the gallant south
The bulging eyes and the twisted mouth
Scent of magnolias, sweet and fresh
Then the sudden smell of burning flesh

            Here is a fruit for the crows to pluck
For the rain to gather, for the wind to suck
For the sun to rot, for the trees to drop
Here is a strange and bitter crop

O poema é marcado por imagens de sabor expressionista, pois se baseiam em elementos grotescos: sangue nas folhas e raízes, corpos negros balançando, olhos inchados, boca torcida, carne queimada. Mas o que o torna ainda mais chocante é a referência a elementos bucólicos que compõem o ambiente descrito, como a brisa do sul, a cena pastoril do sul galante, o doce e fresco perfume de magnólia. Cria-se então uma discrepância de elementos, instituidora de uma ironia amarga que denuncia a selvageria da estranha colheita da última estrofe a que havia se entregado o sul dos Estados Unidos, região nomeada insistentemente (vv. 1, 3, 5). 
Todavia, o mais discrepante e espantoso é que as fotos expostas no vídeo revelam pessoas posando como se se tratasse de uma obra benemérita, alheias à gravidade do que havia cometido. Algumas até serviram à época de cartão postal. Esse era o povo empreendedor, escolhido, abençoado, defensor da liberdade? 
O mesmo problema pode ser visto no retrato abaixo, de alguns anos depois:



Trata-se de uma imagem bastante emblemática. Nela, Dorothy Counts, uma garota de 15 anos, havia ganhado o direito de estudar em uma escola de brancos na Carolina do Norte. Vê-se uma multidão ensandecida achincalhando-a, processo que se prolongou por quadro dias, em que a jovem foi ignorada pelos professores, sofreu apedrejamento e cusparadas, tudo sob a orientação do Conselho dos Cidadãos Brancos, que não admitia que ela furasse a segregação racial. Por fim, por questão de segurança, seus pais decidiram que ela terminaria seu curso na Filadélfia. Mas o episódio serviu para abalar os Estados Unidos a ponto de alimentar a luta dos negros por seus direitos civis.
O que fica dos dois eventos é a ideia de que o homem, pretensamente racional, utiliza sua tendência a animal gregário para se mostrar um idiota, principalmente porque se mostra vítima fácil do comportamento de boiada conduzida. Vida de gado: povo marcado e povo feliz...
Há quem possa dizer, entretanto, que os problemas aqui arrolados não condizem com a realidade brasileira, famosa por sua “democracia racial”. Não se vai mencionar, entretanto, que no início do século XX negros eram proibidos de entrar em certas lojas de departamento da cidade de São Paulo. Não se vai mencionar, entretanto, que em 2012 uma criança etíope adotada por espanhóis foi expulsa de um restaurante paulistano por ter sido confundida com pedinte. Na verdade, o que acontece em nosso país é que a questão racial é confundida e camuflada com a econômica. Não é por acaso que em “Haiti”, de Caetano Veloso, a aliteração das oclusivas (/t/, /p/ e /b/) acaba dificultado a leitura dos versos – preto e pobre acabam se confundindo:

             (...) a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados

Entretanto, não há como negar que houve evolução. Obama é presidente da nação mais poderosa do planeta. Joaquim Barbosa é um exemplo de sucesso ao mostrar que os afrodescendentes não se destacam apenas nas artes ou no futebol. Ainda assim, há muito ainda que caminhar. Ainda surgem frutos estranhos. Basta lembrar que o mesmo sul dos Estados Unidos apresentou uma rejeição monstruosa à reeleição do atual presidente. Além disso, é essa mesma região que está sofrendo para conseguir eliminar em plebiscito leis que ainda lidam com segregação e que na prática nem são mais aplicadas. Quanto ao Brasil, a charge a seguir, de Angeli, publicada na Folha de S. Paulo em 20 de junho de 2006, é magistral ao sintetizar toda a problemática tupiniquim:



 Nela, percebe-se a hipocrisia, fruto estranho da distância entre o discurso politizado – e politicamente correto – de respeito aos direitos humanos e a prática alienada e hedonista. Pensar em 20 de novembro apenas como um feriado, ou pior, fazer discurso sobre a consciência negra e permitir a perpetuação das injustiças que reforçam a segregação econômica, camufladora da étnica, é atualizar os linchamentos do início do século XX.
Enfim, é inegável que houve evolução (não é demais repetir), mas precisamos chegar ao ponto pregado por Morgan Freeman na entrevista abaixo, segundo o qual precisamos não mais sermos lembrados como negros ou brancos, como cristãos ou judeus, mas como pessoas, como seres humanos:




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quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O Rappa e Drummond: dois exemplos de ruptura e continuidade histórica


Em vários momentos foi dito aqui nO Magriço Cibernético que o sentido de um texto é garantido pela conexão entre vários elementos. Sem essa interligação, aliás, o que se tem é nada menos do que um amontoado de ideias, impedindo que a coerência ocorra. Entretanto, é justamente essa falta aparente de nexo que dá sustentação ao clipe acima, “Súplica Cearense”, do Rappa (na verdade, uma composição de 1960, de autoria de Gordurinha, pseudônimo de Waldeck Artur de Macedo, e que já fora gravada por Luiz Gonzaga em 1984).
A primeira discrepância lógica que pode ser apontada está na relação entre a letra da canção e a animação que a ilustra. A cantiga faz referência ao sofrimento de um cearense diante da seca e da inclemente chuva que a substitui, justamente a mesma realidade exposta em Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos. Todavia, as imagens que são apresentadas encenam o conflito de Canudos, ocorrido no sertão baiano. Além disso, essa guerra, como o próprio vídeo mostra, teve seu desfecho em 1897, o que não condiz com o fato de o exército que combateu esses revoltosos surgir usando tanques, pois esses artefatos só chegaram a existir a partir da Primeira Guerra Mundial.
O que se pode inferir de todas essas incongruências? Algo bastante simples e interessante. A quebra da noção convencional de tempo e espaço acaba por construir outra lógica, outra significação, mais ampliada. Em outras palavras, serve para mostrar que os fatos exibidos não se restringem a um momento e a um local, já que são onipresentes. No caso em análise, o sofrimento do nordestino não se prende a um lugar ou a um momento. Ocorreu no século XIX, no XX e continua se manifestando no XXI.

         
            Esse mesmo expediente pode ser visto no poema “Tristeza do Império”, de Carlos Drummond de Andrade, presente no Sentimento do Mundo (1940), obra cobrada pelos exames da FUVEST-UNICAMP 2013:

Os conselheiros angustiados
ante o colo ebúrneo
das donzelas opulentas
que ao piano abemolavam
“bus-co a cam-pi-na se-re-na
pa-ra li-vre sus-pi-rar”
esqueciam a guerra do Paraguai,
o enfado bolorento de São Cristovão,
a dor cada vez mais forte dos negros
e, sorvendo mecânicos
uma pitada de rapé,
sonhavam a futura libertação dos instintos
e ninhos de amor a serem instalados nos arranha-céus de
                           [Copacabana, com rádio e telefone 
                                                         [automático.
           
            A primeira coisa observável nesse poema é que ele se inicia com um vocabulário que já não é mais usado (“colo”, “ebúrneo”, “donzelas”, “opulentas”), mas que é expresso em uma frase com andamento moderno, próximo do coloquial, o que destoa da noção tradicional de poesia. Essa forma é coerente com o conteúdo, principalmente quando se lê no final do texto que os conselheiros, membros da elite do Segundo Reinado do Brasil, alheios à guerra do Paraguai e ao sofrimento dos escravos, estão fruindo seu rapé e pensando na libertação dos instintos a se realizar em apartamentos em “arranha-céus de Copacabana, com rádio e telefone automático”, uma realidade impossível de ser profetizada por essas personagens. Na verdade, o que Drummond institui é uma quebra da fronteira temporal com a intenção de mostrar que o comportamento alienado e hedonista dos privilegiados é de longa data. Nesse ponto, “Tristeza do Império” acaba se tornando irmão de “Os Inocentes do Leblon”. A doença que acomete os privilegiados é atemporal, é onipresente. E quando o poeta rompe a barreira do tempo, acaba por destroçar o discurso de modernização que se espalhou em nossa sociedade no que tange aos costumes. A liberação sexual, como se percebe, não tem nada a ver com modernidade, já que as velhas injustiças sociais continuam imperando. Não há nada de novo, como se dizia no Eclesiastes.
Assim, a competência na análise de textos precisa levar em conta que a relação entre os elementos que constituem o objeto estudado pode ser estabelecida não só pela relação lógica entre os ingredientes que o constituem, mas também pela dissonância que se estabelece entre eles.   

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